José Ribamar de Araújo Silva descobriu, ao desembarcar em São Paulo para o 32º Fórum Nacional de Ouvidores de Polícia, na terça-feira 9, que não era mais o ouvidor do Maranhão. Foi reeleito pelo Conselho de Direitos Humanos local para mais dois anos de mandato, mas a governadora Roseana Sarney (PMDB) decidiu nomear o terceiro colocado da lista tríplice encaminhada ao seu gabinete, mesmo ciente de que o escolhido não havia obtido voto algum. Geraldo Soares Wanderley, do Rio Grande do Norte, viu sua equipe ser reduzida de 12 para cinco servidores nos últimos dois anos. Já a ouvidora do Pará, Cibele Kuss, passou os últimos anos em conflito com os responsáveis pela Secretaria de Segurança Pública do estado para ter acesso aos dados da letalidade policial. Nunca logrou êxito.
Reconhecidos militantes de direitos humanos, todos eles concordam num ponto: foram alvo de retaliações por denunciar crimes e desvios de conduta cometidos por policiais. Na medida em que começaram a expor os problemas mais graves, tiveram recursos reduzidos e o acesso às informações de segurança pública cerceado ao extremo. “Infelizmente, essa é a realidade na maioria dos estados. Algumas ouvidorias gozam de relativa autonomia política, mas nenhuma delas tem orçamento próprio ou plena independência”, diz Cibele, que também coordena o Fórum.
Criada com o objetivo de receber as denúncias, reclamações e sugestões da população sobre a atividade policial, a ouvidoria de polícia constitui uma espécie de órgão de controle externo das forças de segurança pública. Não se trata da única instituição dedicada à tarefa. O Ministério Público, na realidade, é que tem a garantia constitucional para tanto. Mas são as ouvidorias que costumam fazer a ponte entre a população e o governo, além de cobrar e acompanhar as investigações contra maus policiais.
Isso, quando têm condições de trabalhar. Daí a razão de a maioria dos ouvidores defender a autonomia financeira e a obrigatoriedade de eleições em todos os estados. “Por insistência de alguns ouvidores, às vezes conseguimos avançar nas denúncias. Mas somos subordinados aos governos estaduais, que nem sempre dão respaldo às nossas ações”, afirma Ribamar. “O grande risco que corremos, na realidade, é de essa instituição se reduzir a um papel meramente cartorial, de registro de reclamações, ou se transformar num órgão de controle de fachada. Muito bonito no conceito, mas inoperante na prática.”
Ribamar reclama de interferências do Executivo ao longo de todo o seu mandato. Empossado em junho de 2008, acabou exonerado do cargo cinco meses depois, quando o governador Jackson Lago foi cassado. “A governadora Roseana pensou que era um cargo de livre provimento e me mandou embora. Só depois de muito barulho fui reconduzido”, relembra.
Com o apoio de dois assessores e sete funcionários terceirizados, o ouvidor debruçou-se sobre as denúncias de exe-cuções cometidas nas penitenciárias do Maranhão com a participação de servidores públicos. “O secretário-adjunto de Administração Penitenciária (Carlos Moreira) acabou afastado do cargo, porque um dos presos apontou o envolvimento dele na tortura e morte de companheiros. Como atuamos ativamente nesse caso, iniciou-se um processo de asfixia política da ouvidoria.”
O ouvidor de polícia potiguar, por sua vez, passou por um processo de estrangulamento financeiro. Além de ter a equipe reduzida pela metade, o governo começou a atrasar os pagamentos de diárias dos servidores do órgão nas viagens e limitar os recursos para as demais atividades. “Isso começou quando decidimos pressionar o governo a publicar dados relacionados à violência policial. Como eles não informavam o número de homicídios cometidos pela polícia, passamos a contabilizar as mortes que eram informadas por familiares de vítimas e o que era registrado pelos jornais”, explica Wanderley. De acordo com ele, cerca de 50 mortes por ano são atribuídas à polícia no Rio Grande do Norte. “O número é bem maior. Há indícios de que dezenas de homicídios de autoria desconhecida são cometidos por PMs.”
A ouvidora do Pará também usou da mesma estratégia para mensurar a letalidade policial. “Até o dia 9 de setembro, contabilizamos 91 homicídios. Em 2008, foram 71. Mas essa base de dados é muito precária, depende de recortes de jornais. O governo sempre se recusou a nos fornecer esses dados”, diz. “Além do acesso à informação, precisamos enfrentar juntos o problema da falta de autonomia. Três estados, como o Amazonas, possuem ouvidores policiais. Em outros dez não há eleição, e sim nomea-ção direta pelo governador. Nenhum possui independência financeira. Fica difícil trabalhar com tantas amarras.”
De acordo com Ana Cecília Gonzalez, coordenadora de segurança pública da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência, existe um decreto federal que regulamenta a atividade das ouvidorias de polícia. “Pelo texto, o ouvidor não pode ser nem ter sido policial, deve cumprir um mandato com prazo determinado, ser indicado, por meio de lista tríplice, pelo Conselho de Direitos Humanos estadual, e gozar de plena autonomia funcional”, explica. “Só que a maioria dos estados não cumpre esses requisitos, até porque esse decreto tem caráter de diretriz, é apenas uma recomendação, já que a competência para gerir a Segurança Pública é estadual.”
Ana Cecília destaca que o problema maior é outro. “As ouvidorias existentes enfrentam dificuldades, mas estão se aprimorando. Das 27 unidades federativas, apenas 17 possuem ouvidorias de polícia”, afirma a coordenadora. “Além de estimular a criação de ouvidorias nas localidades sem assistência, estamos empenhados na criação de um sistema padronizado de coleta de dados. Assim, será possível acompanhar o número de denúncias formalizadas, quantas delas geraram processo, quais casos resultaram em condenação. Nenhum estado, nem mesmo São Paulo, que tem a ouvidoria mais antiga e mais bem estruturada, possui uma base de dados tão completa.”
De acordo com Luiz Gonzaga Dantas, ouvidor de São Paulo, o sistema é bem-vindo. “Estamos completando 15 anos de atuação no estado, mas, às vezes, também temos dificuldade de encontrar informações e acompanhar os desdobramentos dos casos.”
“Hoje, há muita descrença, porque as ouvidorias de polícia são vistas como café com leite. Tiveram um impulso inicial, mas não decolaram”, lamenta o advogado Renato de Mello, do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). “É preciso montar a resistência. Por mais que tenha problemas, sou um entusiasta desse modelo de controle social.”
Rodrigo Martins – Carta Capital / Foto: Evaristo Sa – AFP