Uma política fiscal que garanta uma redução do déficit público, mas procurando evitar cortes sobre investimentos públicos, é importante para assegurar que o governo não fique refém dos rentistas. Para tanto, a coordenação de políticas macroeconômicas é fundamental, pois um mix de política fiscal contracionista com uma política monetária mais apertada tem o risco de levar a economia a uma desaceleração mais abrupta e precipitada. O artigo é de Luiz Fernando de Paula, professor da UERJ.
Luiz Fernando de Paula (*) – Especial para Carta Maior
A questão “porque a taxa de juros no Brasil é a mais alta do mundo” sempre volta à tona, ainda mais que no momento atual em que a política do “easy-money” do Banco de Reserva norte-americano (FED) tem resultado em uma grande expansão da liquidez mundial. Vários bancos centrais, mesmo em países emergentes, têm evitado neste contexto a elevar a taxa juros, utilizando outros instrumentos de política monetária e cambial (medidas macro-prudenciais, controle a entrada de capitais) para fazer face as pressões inflacionárias derivadas da elevação de preços de alimentos, de modo a desestimular um fluxo maior de capitais externos, com efeitos deletérios sobre a taxa de câmbio.
Economistas ortodoxo-liberais sustentam que o problema da taxa de juros está relacionado ao problema de incerteza jurisdicional (como sustentam Arida, Bacha e Lara Resende) ou ainda a questão do desequilíbrio fiscal, que obriga o governo a ter que financiar no mercado com emissão de dívida, elevando assim a taxa de juros de mercado, já que o governo teria dificuldades de administrar sua dívida em patamares elevados (digamos acima de 30% do PIB), em função do problema de “pecado original”. Esta tese sustenta que alguns países emergentes por conta de história de calotes, alta inflação, etc. não podem manter uma relação dívida pública/PIB elevada.
Já economistas heterodoxo-desenvolvimentistas defendem que o problema da taxa de juros está relacionado à existência de uma convenção conservadora adotada pelo BCB, decorrente tanto do modelo de política macroeconômica adotada (regime de metas de inflação) quanto da própria gestão da política monetária, no qual o BCB acaba por fazer frequentemente o jogo do sistema financeiro, sancionando suas expectativas altistas em relação a inflação. Em particular, haveria uma relação de subserviência do BCB aos interesses do mercado financeiro, evidenciado até mesmo pelo fato de que as diretorias estratégicas na definição da política monetária ficariam a cargo de economistas vindos do próprio mercado. Acrescente-se ainda que a política monetária não teria, nesta visão, efeitos neutros de longo prazo sobre as variáveis reais da economia (produto e emprego), uma vez que a taxa de investimento da economia seria fortemente impactada pela taxa de juros, e conseqüentemente o próprio produto potencial seria influenciado de forma importante pela política monetária.
Embora a hipótese da incerteza jurisdicional seja algo “sem pé e cabeça”, já que carece de qualquer suporte empírico (países com incerteza jurisdicional maior do que a brasileira têm taxa de juros menores!), há algum fundo de verdade nos dois argumentos, ainda que com boa dose de exagero: o desequilíbrio fiscal pode contribuir para a manutenção da taxa de juros elevadas em função da própria estrutura de dívida pública existente no Brasil (mas não por problemas de “pecado original”) e na condição especial de que a economia esteja perto da sua “plena capacidade”; e a convenção pró-conservadora tem feito que o BCB, ao menos até recentemente, reaja a sinais de inflação (decorrentes por exemplo de uma redução no hiato do produto) elevando a taxa de juros em magnitude maior do que reduz a mesma quando as condições assim o requerem.
O problema da dívida pública está em parte relacionado à “jabuticaba” ainda existente que é a existência de títulos públicos indexados a Selic (LFTs), com participação em cerca de 35% do total da dívida pública. Isto faz com que a mesma taxa de juros que é usada para propósitos de política monetária, definindo o custo das reservas bancárias, seja a taxa que remunera parte da dívida pública. Isto gera uma série de distorções, como o “efeito-contágio” entre mercado de dívida pública e a política monetária: um aumento nos custos da rolagem da dívida acarreta um aumento na taxa de juros básica; mas o contágio pode ir também na direção contrária: um aumento na taxa Selic, por conta da condução da política monetária, encarece a rolagem da dívida pública. Um efeito importante da existência das LFTs é que o efeito riqueza da taxa de juros (perda do valor dos títulos prefixados devido a um aumento na taxa de juros) acaba sendo neutralizado ou mesmo eventualmente invertido: elevações nas taxas de juros, para propósitos de contenção de demanda agregada, resultam em aumento da riqueza financeira dos agentes, já que a remuneração dos títulos indexados a Selic se eleva, que têm seu poder de compra aumentado.
Uma questão obscura é qual seria a “taxa de juros de equilíbrio” da economia, ou seja, aquela que permitiria a economia crescer dentro do seu potencial sem maiores pressões inflacionárias. Na primeira metade da década de 2000 falava-se frequentemente o produto potencial brasileira era próximo do crescimento real do PIB da ordem de 3,0%; agora, num passe de mágica, fala-se em 4,5% ao ano. Como diz o economista Delfim Netto, o produto potencial empiricamente é algo misterioso, e não é sem razão. Keynes, neste particular, dizia que não se pode conhecer a trajetória de longo prazo da economia sem definir previamente a política monetária, isto porque obviamente a taxa de juros afeta de forma importante a taxa de acumulação da economia, e, consequentemente, o próprio produto potencial. Daí a dificuldade de se definir o produto potencial da economia e, a partir dela, a taxa de juros de equilíbrio compatível.
O BCB dá alguns sinais de mudança na gestão do regime de metas de inflação, até mesmo por conta de ter atualmente uma diretoria composta por funcionários próprios do banco, após anos de administração puramente ortodoxa na gestão Meirelles. Já no final de 2010 adotou instrumentos não-convencionais de política monetária, as chamadas medidas macroprudenciais, incluindo o aumento do requerimento de capital para operações de crédito a pessoa física com prazo superior a 24 meses, como forma de produzir uma desaceleração no ritmo de expansão do crédito bancário (em particular crédito consignado e financiamento a veículos), e, conseqüentemente, reduzir a demanda agregada, ao invés de um aumento na taxa básica de juros (com efeitos deletérios sobre a dívida púbica e a taxa de investimento da economia). Ademais o BCB na gestão Tombini tem se mostrado menos propenso a levar ao pé da letra as expectativas inflacionárias, aparentemente não se deixando levar totalmente pela forte deterioração das expectativas inflacionarias para 2011, evitando que expectativas excessivamente pessimistas “geradas” pelo mercado financeiro sobre a inflação futura acabam sendo sancionadas pelo BCB via elevações mais bruscas na taxa de juros, o que faria a festa do sistema financeiro. A escalada da taxa de juros nos próximos meses vai ser fundamental para aferir se o BCB está adotando realmente uma postura mais autônoma em relação aos “interesses” do mercado financeiro – na reunião de 2/3/2011 o COPOM elevou a taxa básica de juros em 0,5%, enquanto que o mercado “pedia” um aumento de 0,75%.
Uma agenda interessante e necessária de médio prazo para a condução da política macroeconômica no Brasil deve incluir uma política mais agressiva de melhoria na gestão da dívida pública (com uma redução ainda maior das LFTs), alguma revisão na indústria de fundos de investimento e nas cadernetas de poupança, “forçando” um alongamento nas aplicações financeiras, uma mudança no sistema de coletas das expectativas inflacionário pelo BCB, passando a serem feitas mensalmente ao invés de semanais, e uma mudança no horizonte temporal de decisão do BCB quanto a meta de inflação, por exemplo passando de um ano calendário para dois anos (isto poderia possibilitar um gradualismo maior na política monetária). Uma política fiscal que garanta uma redução do déficit público, mas procurando evitar cortes sobre investimentos públicos, é importante para assegurar que o governo não fique refém dos rentistas. Para tanto, a coordenação de políticas macroeconômicas é fundamental, pois um mix de política fiscal contracionista com uma política monetária mais apertada tem o risco de levar a economia a uma desaceleração mais abrupta e precipitada.
(*) Professor de Economia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Presidente da Associação Keynesiana Brasileira (AKB).