Memória visual da luta contra ditadura no RS é documentada em livro
Rachel Duarte/sul 21
Tanques nas ruas, prisões, oficiais e centros clandestinos de tortura, agentes famosos da repressão, ações organizadas de luta armada, grandes passeatas estudantis, greves, enfrentamento entre manifestantes e forças policiais. A memória visual da ditadura civil-militar reunida em uma publicação que analisa pela primeira vez o período de exceção no Rio Grande do Sul. São 255 páginas com fotos e charges de artistas locais que retrataram a repressão de 1961 a 1988. O livro Não calo, grito – Memória Visual da Ditadura Civil-Militar no Rio Grande do Sul será lançado neste dia 1º de abril e depois distribuído nas escolas estaduais. A intenção dos autores Carla Simone Rodehero, Gabriel Dienstmann e Dante Guazzelli é que a partir deste Dia da Mentira, a verdade sobre a história do país chegue a um número cada vez maior de pessoas.

Mobilização pela reabertura do Teatro de Arena, 1980 | Foto: Espaço Sônia Duro – Centro de Desenvolvimento e Pesquisa em Artes Cênicas do Teatro de Arena

Ilustrações de Edgar Vasques sobre o assassinato de Manuel Raimundo Soares para o Coojornal | Foto: Acervo de Imprensa do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa
A obra traz mais de 300 imagens sobre a ditadura no Rio Grande do Sul cedidas por nove fotógrafos e 10 chargistas gaúchos, além de contribuições de órgãos como o Museu da Comunicação Hipólito José da Costa e Memorial do Legislativo do RS, entre outros museus nacionais e do interior gaúcho. Fazem parte do livro trabalhos de Assis Hoffmann, Eduardo Tavares, Antônio Vargas, Luiz Eduardo Achutti, Ricardo Chaves, Daniel de Andrade Simões, Jaqueline Joner, Luiz Abreu, Eneida Serrano, Sampaulo, Bendati, Santiago, Edgar Vasques, Canini, Luis Fernando Verissimo, Wilson Cavalcanti, Juska, Eugênio Neves, Bier, Antônio Vargas, entre outros.
“Muitos chargistas e cartunistas locais viram seus trabalhos serem proibidos, mas em geral conseguiram publicar a maior parte do que faziam, às vezes para a surpresa deles mesmos. Entre o que ‘passava’ e o que ‘não passava’ construiu-se aqui uma obra de contestação bem humorada feita com inteligência e talento. É esta obra que está neste livro – uma evocação simultaneamente divertida e amarga daquele tempo” – Luis Fernando Veríssimo.
No evento de lançamento, marcado para a próxima segunda-feira (1º), a partir das 19 horas, haverá uma mesa-redonda com os autores e os artistas Edgar Vasques, Ricardo Chaves e Wilson Cavalcanti. Cavalcanti é autor da obra de capa que dá nome ao livro “Não calo, grito”, em que o grito de um homem é cortado por uma faixa de censura feita de outras pessoas amordaçadas. Também estarão presentes representantes da Comissão de Anistia, responsáveis pelo projeto Marcas da Memória que patrocinou o livro.

“Ao mesmo tempo em que víamos se formar uma valiosa coleção de imagens, percebíamos que a maior parte delas dizia respeito a acontecimentos ocorridos em Porto Alegre”, dizem historiadores | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Este é o segundo trabalho dos historiadores Gabriel Dienstmann e Dante Guazzelli e ao lado da professora do Departamento de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Carla Simone Rodeghero. Em 2011, também por meio de edital da Comissão de Anistia, eles desenvolveram o projeto Marcas da Memória: história oral da anistia no Brasil.
O novo trabalho Não calo, grito – Memória Visual da Ditadura Civil-Militar no Rio Grande do Sul foi pensado de forma a sistematizar o conhecimento histórico sobre o período ditatorial no RS e a partir da constatação de que as imagens mais divulgadas sobre a ditadura (como fotos e charges) concentravam-se em fatos e personagens geralmente localizados no centro do país. “A ideia toda surgiu na tentativa de demonstrar que a luta armada e resistência dos movimentos não é algo que fez parte da história do Brasil apenas em São Paulo e Rio de Janeiro. Aqui também tivemos marcas e por isso buscamos os artistas locais. As imagens e memórias estavam nos museus ou com os artistas; agora estão reunidas em único material. Este é o grande diferencial do livro”, fala Dante Guazzelli.

Charge de Santiago sobre a prisão das lideranças do Sindicato dos Bancários do Rio Grande do Sul durante a greve de 1979 | Ilustração: Santiago
Todas as pesquisas acadêmicas já desenvolvidas sobre a ditadura militar também subsidiaram o trabalho, mas o livro traz fotos de acontecimentos ainda em aberto, como a queima dos arquivos do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) em 1982. “Ao mesmo tempo em que valorizamos os estudos já existentes, gostaríamos que o nosso livro servisse de incentivo para pesquisas sobre o que ainda não foi pesquisado. Com a foto da queima de arquivo do DOPS é possível cobrar uma reposta oficial do governo do estado sobre que fim que levou o arquivo do DOPS. Nos tempos atuais isso não pode mais ficar assim”, diz a professora Carla.
Da Legalidade às heranças da ditadura

Lista de pessoas presas pela ditadura no Rio Grande do Sul. Folha da Tarde, 24 de abril de 1964 | Foto: Acervo de Imprensa do Museu Hipólito José da Costa
Apesar de centrada na realidade gaúcha, a obra tem contribuições para o entendimento do quadro geral da ditadura no Brasil. O livro é dividido em duas partes. A primeira retrata os fatos marcantes de 1961 a 1974; na segunda, surgem os acontecimentos ocorridos entre 1975 e 1988. São capítulos curtos, com temas que envolvem casos emblemáticos da história do país durante o período de exceção, como a Legalidade e o Golpe de 64. “Tem fatos que foram marcantes aqui no estado, como o Caso das Mãos Amarradas e a perseguição a uma quantidade de pessoas ligadas ao Partido Trabalhista. Falamos bastante do período dos expurgos, prisões e cassações. Falamos das peculiaridades da luta armada no estado também”, conta a professora.
“O último capítulo, Heranças da Ditadura, tem fotos da violência policial que ocorreu depois da posse de José Sarney, período considerado por alguns com democrático, em que prenderam manifestantes de forma muito semelhante ao que acontece nos dias de hoje”, diz o historiador Dante Guazzelli.
No livro, além dos aspectos políticos e do ponto de vista da repressão e dos movimentos de resistência, revela-se o aspecto cultural e social da ditadura civil-militar. “Analisamos a tentativa da ditadura de se legitimar e fazer propaganda congregando pessoas em seu favor. E buscamos imagens do teatro, literatura e da música para retratar os artistas que se manifestaram contra o regime”, fala Gabriel Dienstmann.

Livro reúne charges e fotos de artistas gaúchos que retratam o aspecto político, social e cultural da ditadura civil-militar no RS | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Tudo foi feito de forma coletiva e colaborativa com fotógrafos e cartunistas, sendo preservados os direitos autorais. A verba do convênio firmado com o governo federal permitiu a remuneração aos profissionais. “Foi difícil a edição e seleção das melhores, devido ao denso volume coletado”, diz Gabriel. Além do cuidado em legendar as imagens, o conteúdo gráfico e imagético é apoiado por texto. “Conseguimos sistematizar todo o material e unir ao texto de um conhecimento há muito tempo produzido na academia. Certamente poderá subsidiar o trabalho de novas pesquisas, da Comissão Nacional da Verdade e atender ao principal objetivo que é ir para as escolas estaduais”, fala o historiador.
Uma brochura, destinada aos professores, acompanha o livro e traz sugestões para a utilização do material em sala de aula, especialmente com alunos do ensino médio. O guia pedagógico é um instrumento para difundir o conhecimento da ditadura e o trabalho do fotojornalismo e cartunismo gaúcho. “O professor, ao invés de trabalhar a censura em sala de aula com charges do Henfil (cartunista carioca), pode utilizar o trabalho do Santiago, do Bier”, compara Dante Guazzelli.
Impacto visual pode atrair alunos da rede estadual

“O livro poderá ampliar o número de pessoas que tem conhecimento desta história, que geralmente fica em âmbitos mais restritos”, diz professora Carla Rodeghero | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
A análise dos autores é de que o poder das informações visuais tem maior alcance e pode atrair o interesse de um público ainda distante da história da ditadura civil-militar. “Geralmente fica em âmbitos mais restritos. Chegando às escolas e a um público maior teremos mais pessoas com conhecimento e esclarecimento para se situar frente aos processos em curso na busca de reconstrução das violências e comissões de verdade”, diz a professora Carla.
A memória visual presente no livro retrata em roupas e cortes de cabelo da época dos anos de chumbo temáticas ainda contemporâneas. “As imagens são muito próximas da realidade que ainda é visível nas ruas hoje. O que foi capturado em foto, foi expresso nas charges”, fala Dante. “O surgimento do movimento ambientalista, quando muitos jovens subiram nas árvores. A luta contra o racismo e o machismo. A defesa dos índios, forte em 1978. Tudo isso se mantém nos dias de hoje”, complementa Gabriel.

Cartazes de propaganda da ditadura produzidos pela AERP ou por empresas privadas | Foto: Acervo de Publicidade do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa

Charge de Santiago sobre a relação das grandes empresas multinacionais com a ditadura | Ilustração: Santiago
O livro foi produzido em um ano de pesquisa e desenvolvido Centro de Assessoria Multiprofissional (CAMP). A edição foi da Tomo Editorial. No dia do lançamento ocorrerá distribuição gratuita do livro e sessão de autógrafos. A tiragem de 2 mil exemplares prevista no convênio beneficiará as escolas estaduais do RS, mas os autores estão esperançosos de apoio para reedição do livro, para que o alcance contemple um número maior de pessoas.

Jair Soares, Jose Sarney, Pedro Simon e militar em cerimônia oficial | Foto: Daniel de Andrade Simões

Panfletos e santinhos de campanhas eleitorais no Rio Grande do Sul, década de 1970 | Foto: Reprodução