As artérias levam sangue oxigenado e uma série de células e fluídos
fundamentais ao funcionamento de partes do corpo, e do corpo como um
todo. O estrangulamento dos vasos sanguíneos por um torniquete ou
mesmo por trombose (coagulação) de um membro do ser humano, se
demorado, pode interromper irreversivelmente o fluxo de sangue em
partes desse corpo, podendo causar gangrena. Segundo o dicionário
Aurélio, gangrena significa ?morte, em extensão variável, de tecido ou
de órgão, e devida à perda de suprimento sanguíneo seguida, ou não, de
invasão bacteriana e de decomposição tecidual?.
Os rios são artérias de vida, múltipla e diversa. As barragens de
hidrelétricas obliteram os rios e seu corredor de migração biológica
(jusante-montante ou vice-versa), podendo causar uma forma de gangrena
nos cursos d?água, ou seja, morte de flora, fauna e ecossistemas
originais. As consequências são muitas e ocorrem como bola de neve,
inclusive na degradação de ambientes naturais associados.
Quanto maior a barragem, maior a consequente morte de grande parte da
biodiversidade original (espécies de peixes, plantas e demais
organismos exclusivos de rios caudalosos e de corredeiras) ou dos
ecossistemas vizinhos (matas ciliares, cerrados, campos nativos,
etc.). A destruição e a fragmentação dos habitats (diminuição de
habitats e o maior isolamento das espécies) – principais causas da
extinção – tendem a trazer efeitos devastadores para muitos dos
animais e plantas silvestres.
A sobrevivência destes requer populações mais ou menos numerosas e um
estoque de indivíduos, com variabilidade genética, que possam se
entrecruzar e cruzar com outras um pouco mais distantes. O
endocruzamento, dentro de pequenas populações isoladas por barragens,
geralmente traz problemas dramáticos às mesmas. O isolamento,
principalmente constituído por poucos indivíduos, é um passo à extinção.
Alguns peixes, como o dourado e o surubim, dependem de pelo menos 100
km de cursos d?água correntes, portanto, livres de barragens. A
interrupção dos rios, por obras de hidrelétricas ou de irrigação,
muitas vezes em série, está condenando centenas ou milhares de
espécies de organismos aquáticos a seu desaparecimento e destruindo
irremediavelmente seus ecossistemas, principalmente no Brasil.
O rio Uruguai, por exemplo, se for alvo da construção de todas as
barragens planejadas pelos militares em 1979, e requentadas agora
pelos PACs (Programas de Aceleração do Crescimento), desapareceria
como um rio. Na realidade, se nada for feito, se transformará em um
colar de dez lagos de grandes hidrelétricas, e outras 150 pequenas e
médias hidrelétricas, com a perda de centenas de espécies, com a morte
de quase mil quilômetros de um ecossistema lótico (de águas
correntes), sumindo para sempre pescadores e ribeirinhos. Esse
prognóstico, se depender dos governos, da Empresa de Pesquisa
Energética, do Ministério de Minas e Energia e das empresas
concessionárias de produção de energia, vai se multiplicar para outras
bacias.
No caso de seres humanos, os transplantes podem resolver a perda de
partes do corpo. Tratando-se da perda de espécies de rios ou matas
ciliares, a situação seria irrecuperável, pois não existiriam
?doadores? nem ?transplantes? que pudessem repor as espécies perdidas.
Portanto, a extinção é para sempre!
Segundo Edward Wilson, um dos principais pesquisadores mundiais em
biodiversidade, a extinção está ocorrendo de maneira exponencial, com
a perda anual entre 10 mil a 30 mil espécies por ano em todo o
planeta. De acordo com seus prognósticos, se continuarmos no ritmo
atual de degradação ambiental será perdida a metade das espécies, ou
seja, cinco milhões de organismos distintos de todo o planeta até
meados deste século. Tal situação de perda talvez nunca tenha
ocorrido, pelo menos nas últimas centenas de milhões de anos de vida
na Terra.
Além da morte direta da biodiversidade dos rios, em decorrência da
interrupção de obras de barragens, outras consequências danosas podem
estar associadas ao desequilíbrio estabelecido pela nova condição. Os
organismos originais (flora, fauna, microorganismos, etc.) seriam como
células imprescindíveis do nosso corpo, que morreriam, ameaçando a
sobrevivência do sistema vivo como um todo.
Por exemplo, aquilo que seria a ?invasão bacteriana e de decomposição
tecidual?, na sequência da gangrena, pode estar relacionado à invasão
de espécies exóticas, que infestam corpos d?água artificiais e causam
prejuízos consideráveis. Nos rios brasileiros, este fato pode ser
ilustrado pela ocorrência crescente do mexilhão-dourado, molusco que
veio da Ásia, junto com a água de lastros de navios, há menos de duas
décadas, e possui uma expansão impressionante, alterando a comunidade
aquática e obstruindo turbinas de hidrelétricas, como no caso de Itaipu.
Nos reservatórios de hidrelétricas, o efeito dominó da degradação
segue. Quanto maior a intervenção por esse tipo de obra, os habitats e
os ecossistemas podem entrar em colapso, pois já perderam a oxigenação
das corredeiras bem como a presença de peixes e plantas exclusivos de
cursos d?água. Com a decomposição dos restos vegetais (troncos,
galhos, folhas, etc.) ou pelo excesso de nutrientes acumulados na água
represada pode ocorrer crescimento exagerado de algas e plantas
aquáticas e poluição por eutroficação. Isso, muitas vezes, é seguido
pela emanação de metano (CH4), gás 23 vezes mais potente do que o CO2
no incremento do efeito estufa, fenômeno que está relacionado ao
aquecimento global e às mudanças climáticas antropogênicas.
Outros problemas sistêmicos que acabam ocorrendo com a saúde de nossos
rios e/ou ameaçando ainda mais a saúde humana são aqueles relacionados
ao aumento das doenças tropicais (leishmaniose, febre amarela,
malária, etc.), com os alagamentos dessas obras. O desarranjo geral no
?paciente?, a Biosfera, é uma consequência de muitas intervenções, em
série, sem o conhecimento e a avaliação suficiente da complexidade
(processos ecológicos) e nem do ?prontuário? (histórico e problemas
ambientais) dos sistemas naturais, em especial os fluviais.
Infelizmente, apesar do processo de ?ecoenfermidades?, em cadeia, a
moda seria – a semelhança de ?bombar? o crescimento muscular do corpo
humano – incrementar a implantação indiscriminada de grandes e/ou
múltiplas hidrelétricas para garantir o tal crescimento econômico.
?Crescimento? calcado na exportação das efemérides commodities,
energívoras, como o minério de ferro e de alumínio, bem como de pasta
de celulose, como com muitos ?anabolizantes? e ?hormônios?, via PAC,
BNDES, BID, etc.
Em relação à hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, a terceira maior
hidrelétrica do Mundo, com muito ?anabolizante? do BNDES, o efeito
dominó da degradação pode se espalhar como uma chaga para outros
sistemas vivos e em estado de alta vulnerabilidade. A região, que já é
afetada pelo desmatamento sem controle, sofrerá ainda mais com o
incremento de mais de 100 mil imigrantes a procura de empregos efêmeros.
Cabe destacar que também do ponto de vista humano os rios têm papel
crucial para as populações tradicionais, em especial os indígenas. A
dieta em peixes é chave para muitos grupos, fornecendo proteínas
essenciais a esses povos. Para eles, os rios correspondem a uma
?coluna vertebral? para sua sobrevivência, sua cultura e seu modo de
vida. Os povos da floresta e dos rios não precisam de ?anabolizantes?
econômicos. Em Belo Monte, os índios do Xingu não entraram no
?prontuário? da mega-hidrelétrica, como de praxe ocorre no Brasil.
O modo de vida, a extinção de espécies da biodiversidade brasileira, a
saúde de nossos rios, a água e a energia não podem ser descartados
como órgãos sem função ou trocados por ?compensações?. São elementos
essenciais, que deveriam ser tratados também como ?estruturantes?,
para o sucesso de um verdadeiro desenvolvimento para qualquer país, e
em especial o Brasil, até agora, o campeão da diversidade biológica
mundial. No que se refere à Constituição Federal, é importante lembrar
que é crime provocar o desaparecimento de espécies bem como permitir a
destruição, a apropriação externa e a extinção do modo de vida de
nossos indígenas e ribeirinhos.
Cabe ainda destacar que outras tantas barragens de hidrelétricas muito
impactantes estão também previstas, pelos PAC 1 e 2, para serem
construídas, mesmo nas chamadas ?Áreas Prioritárias para a
Conservação? (Port. n. 09/2007 do MMA,). Não são poupadas nem mesmo as
áreas incluídas na categoria de ?Extrema? ou ?Alta? importância, pelos
documentos governamentais de proteção, ou seja, no coração de biomas
como a Floresta Amazônica ou a Mata Atlântica. Como aceitar que se
destrua o coração ou a coluna vertebral ecológica, social e cultural
do País, representada pelos rios brasileiros?
Que direito possuem alguns ministros, o presidente da República e meia
dúzia de grandes empresas doadoras de campanhas eleitorais para
arrematar em leilão e destruir o patrimônio natural da Nação? Qual o
futuro dos povos indígenas expulsos e expropriados, inclusive em áreas
prioritárias para a conservação? Tudo leva a crer que o delírio
esclerótico da economia atual, levado a efeito pelas grandes empresas
de produção de energia e dos governos que as servem, vai criar um
horizonte propício, e sem volta, para o esmagamento dos direitos
sociais e da natureza. Para estes atores, forjar uma eutanásia
ambiental, difundindo que a vida biodiversa dos rios não existe mais,
é o próprio fato consumado, tão comum à transgressão ambiental ligada
ao poder econômico e político.
A expansão da fronteira hidroenergética, com sua contumaz expropriação
de terras indígenas, parece não ter limite neste País. Não se prevê
nem mesmo o que se poderia chamar de ?reserva legal? para os cursos
d?água naturais. Se depender da sede ?anabolizante? do grande capital,
em hipertrofia patológica, e da sanha dos políticos e governantes por
este financiados, quase nada restará. Ou estamos errados? Então, que
nos provem o contrário!
As gerações futuras provavelmente nos condenarão por permitirmos o
extermínio da vida biodiversa e das culturas milenares, simplesmente
porque estamos deixando converter tudo o que é belo em dinheiro.
Mas, para salvar a vida ecossistêmica cabe o dever cívico de
resistirmos à doença econômica, autista e esclerótica, da acumulação e
dos megainvestimentos feitos em grandes obras impactantes, como a da
hidrelétrica de Belo Monte. Lutemos por outras formas de geração de
energia, compatíveis com a vida e que respeitem as culturas milenares
de nossos povos tradicionais.
Vamos manter os Rios Vivos e Livres de Barramentos, pois são
essenciais ao equilíbrio ecológico dos sistemas naturais e à vida
humana!
http://viabiodiversa.blogspot.com.br/
Paulo Brack (maio de 2010)
—-
* Este artigo de opinião é dedicado a Glenn Switkes, que faleceu em 21
de dezembro de 2009, um dos mais incansáveis defensores dos rios vivos
do Brasil e da América Latina.