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Artigo – Governo Dilma: uma democracia em disputa

Governo Dilma: uma democracia em disputa

Ademais de um governo em disputa, há, sobretudo, uma concepção de democracia em disputa no país. Não é um assunto de tertúlia acadêmica.

por: Saul Leblon (carta maior)

Dizer que o segundo mandato da Presidenta Dilma será um governo em disputa é correto mas ainda insuficiente para caracterizá-lo.E, sobretudo, para antever   o que vem pela frente.O requisito da exatidão não é um preciosismo conceitual. Há consequências políticas em jogo.Um governo em disputa, dentro de uma ampla coalizão de interesses, assim foram todos os mandatos conquistados pelo campo progressista desde 2002.A singularidade atual não deriva apenas do grau da disputa, sem dúvida o mais extremado desde o dramático torniquete armado contra o primeiro governo Lula, em 2003.A composição do novo ministério é um reflexo do ponto a que chegamos.Representantes da agenda derrotada pelo voto popular assumem funções importantes no comando da economia numa discutível tentativa de se mitigar o cerco dos mercados ao governo vitorioso nas urnas.A tensão é clara, mas  ainda não  esgota a especificidade do que está em jogo.A concessão reflete o entendimento de que os efeitos cumulativos da crise internacional recairão com mais força sobre o país nos próximos anos.A reversão do ciclo de alta das commodities no mercado internacional estreitou, de fato,  a margem de manobra na acomodação dos conflitos inerentes à luta pelo desenvolvimento.Trata-se de uma mudança substantiva em relação a tudo o que já se viveu nos últimos doze anos.Será mais complexo, inevitavelmente mais conflitivo, governar em favor da maioria e da justiça social.Não é correto, porém, e menos ainda sensato, atribuir todos os desafios e riscos do próximo período à espiral descendente nos mercados globais.Não se subestima a nitroglicerina social acumulada em um mundo em que a Europa, e tudo o que ela representou um dia, desmancha em um solvente deliberado de desemprego e deflação. A China reduz quase à metade seu impulso de crescimento. E os EUA pilotam uma recuperação anômala em que a finança regurgita lucros mas o avanço do PIB não se reflete na renda de uma classe média, cujo poder de compra persiste abaixo do patamar pré-crise.Que esse trem descarrilado avance pelo sétimo ano desde a implosão a ordem neoliberal, na mais lenta, incerta e anêmica recuperação de todas as grandes crises capitalistas do século XX, dá a medida do quão longe se encontram as margens do rio revoltoso em que flutua o futuro brasileiro.A correnteza requisita cautelas e ajustes.Mas há distorções locais de igual gravidade que não podem mais ser subestimadas, sob pena de se aleijar a capacidade de resistência diante do moedor de carne interno e externo.A economia brasileira resistiu à lógica da restauração neoliberal nos últimos anos, mas deixou aberto um flanco que agora ameaça reverter suas conquistas e inviabilizar outras novas.A verdade é que a largueza das mutações registradas na sociedade desde 2003 não se fez acompanhar de uma contrapartida de representação política suficiente para evitar o risco desse revés.Viveu-se, em grande parte, um bonapartismo do PIB.O incremento da riqueza permitiu que o Estado deslocasse fatias maiores da renda aos mais pobres, sem triscar em cinco séculos de patrimônio acumulado pelos endinheirados.A maré cheia ensejou uma travessia ao largo de questões distributivas mais estruturais, a exemplo daquelas sublinhadas pelo moderado  Thomaz Piketty.A saber: a taxação das heranças e das grandes fortunas, por exemplo, sem o quê, no entender do economista autor de um enciclopédico estudo sobre a desigualdade e a finança, a polarização social subsiste mesmo nas entranhas de um crescimento robusto. O Brasil avançou muito nos últimos anos explorando rotas de menor resistência e indo além delas em alguns casos e setores.Mas a crise do  bonapartismo do PIB evidenciou os limites dessa associação a frio entre desenvolvimento e justiça social.Durante muito tempo considerou-se que essa era uma ‘não-questão’; que tudo se resolveria no piloto automático de uma inclusão pelo consumo, com avanços incrementais que se propagariam mecanicamente das gôndolas das supermercados à correlação de forças na sociedade.A meia verdade em céu azul de brigadeiro dissipou-se em meio à tempestade global que não cessa.O baixo incentivo ao engajamento dos grandes contingentes ingressados no mercado nos últimos anos revela agora seu calcanhar de Aquiles.Não se trata de depreciar conquistas indiscutíveis da luta contra a desigualdade, sugestivamente endossada pela quarta vez em seguida nas urnas de 2014, no mais longo ciclo de um mesmo projeto no poder.Trata-se, isto sim, de fazer desse legado um mirante para enxergar melhor o futuro. Sob risco de apenas se substituir o bonapartismo do crescimento pelo cesarismo do ajuste.Ou seja, simplesmente trocar a delegação antes atribuída ao PIB pela carta branca sugerida agora ao  ‘gestor técnico’, cujo manejo contracionista requisita dos principais atingidos a mesma passividade contemplada no ciclo de alta do crescimento.O conjunto remete de volta à natureza singular da disputa em jogo na política brasileira hoje.É certo que há um governo em disputa na coalizão de interesses reunidos no segundo mandato da Presidenta Dilma.Mas há algo além disso.E é justamente o que distingue a gravidade do período que se inicia.Ademais de um governo em disputa, há, sobretudo, uma concepção de democraciaem disputa no país.E essa não é uma questão acadêmica. É uma questão de escolha estratégica.Trata-se de encarar de frente uma lacuna de que sempre se ressentiu a agenda progressista desde a chegada ao poder, em 2003.A lacuna da coerência entre meios e fins; entre o desenvolvimento que se quer para o Brasil e a democracia necessária para construí-lo.Endossar falsas convergências redentoras, a exemplo do ‘fazer mais com menos’, despolitiza, confunde e infantiliza a sociedade.Oculta-se a verdadeira luta de sabre no escuro que será o processo em marcha de dividir a fatura da crise e instaurar um novo ciclo de crescimento no Brasil.Ao não distinguir uma coisa de outra, corre-se o risco de endossar a tese que pretende equacionar a desordem atual com poções adicionais do veneno que a originou.A dissonância entre um Brasil que se propõe a construir um Estado de Bem-estar social tardio e a restauração neoliberal não é um maniqueísmo.Tampouco um cacoete desenvolvimentista.Trata-se de uma contradição que a crise escancarou.Não se incorpora 60 milhões de ex-miseráveis e pobres ao mercado sem mexer nas placas tectônicas de uma ‘estabilidade capitalista’ alicerçada em uma das mais desiguais estruturas de distribuição de renda do planeta.Sobram assim duas opções.Avançar e dar coerência estrutural e política à emergência desse novo ator, ou recuar e devolvê-lo à margem de origem, colocando-o em modo de espera até a próxima maré cheia.Até um novo ciclo de bonapartismo do PIB.Essa é a  singularidade urgente do segundo mandato da Presidenta Dilma.Não é apenas a economia que está em jogo.É uma democracia que está em disputa.O seu avanço, ou  a sua prostração, determinará a natureza do ajuste e o futuro do desenvolvimento no país.