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O passado que delata o presente

Ayrton Centeno *
Especial para o Sul21

Todo dia é dia de erguer as mãos para o céu e agradecer à brava imprensa brasileira. Se o Judiciário tornou-se um covil de apaniguados, o Legislativo entregou-se à mazorca e o Executivo urde artimanhas sinistras, onde estaríamos sem suas luzes guiando nosso áspero caminho em meio à escuridão? Sem seu farol de profissão de fé democrática? Seríamos presas fáceis das tenazes do Foro de São Paulo e de sua doutrinação alienígena, instrumentada por Gramsci do além-túmulo. Nada mais incompatível com nossas caras tradições cristãs. Fora da mídia, inexiste democracia na nação.

Para atestar o destemor da imprensa empresarial ao longo da história do Brasil viajamos a algum lugar do passado. Escolhemos uma edição e um diário – mas poderiam ser dezenas de diários e milhares de edições – para comprovar a audácia quase suicida dos colossos que conduzem as mega-empresas de comunicação. Benfeitores estoicos, de peito aberto e desafiador, pondo de lado seus próprios interesses em prol do amor à verdade. Avante, pois.

“O Brasil comemora seis anos da Revolução”, proclama a manchete de capa. É o dia 31 de março de 1970. Haverá concerto da Banda da Guarda Municipal, inauguração da escola, distribuição de comida e desfiles de tropas e de escolares. No texto, o vice-almirante Silvio Figueiredo nos esclarece que “a Revolução de 64 foi a vitória dos valores espirituais”. E o general Orlando Geisel sustenta que as forças armadas encarnam “os meios democráticos da mais alta importância para garantir o desenvolvimento brasileiro”. Magistral formulação, ainda mais se considerarmos que o autor da frase é o mesmo oficial que ordenou o bombardeio democrático do centro de Porto Alegre em 1961, durante a crise da Legalidade. Então, chefiava o gabinete do ministro da Guerra, Odilio Denys, outro democrata de quatro costados. Desafortunadamente, a impatriótica reação de subversivos na Base Aérea de Canoas impediu que a esquadrilha de caças Gloster Meteor carregada de bombas decolasse para democratizar alguns milhares de gaúchos.

Navegamos pela cobertura de política internacional e, na página 4, atracamos novamente no Brasil. “Revolução, ano VI” é o editorial. Na opinião do matutino, a “Revolução” não merece somente um simples crédito de confiança mas “o decidido apoio” dos brasileiros, “a perfeita integração, a entusiástica participação de todos na gigantesca construção do Brasil dos nossos sonhos”. Convenhamos, é lindo. A custo, contivemos as lágrimas e prosseguimos.

Enquanto o editorial construía os nossos sonhos, seu vizinho de porta, o comandante da 2ª Região Militar, Vicente de Paula Dale Coutinho, lecionava história. Aquinhoado com meia página – quatro colunas de alto a baixo em formato standard — o general ensinava que João Goulart fora uma “flor alimentada no mar de lama do Catete em 1954”, que Jânio Quadros era um “neoesquerdista” e que Juscelino Kubitschek resumia-se em tipo “eleitoreiro”, chefe de governo “corrupto”, “desastroso” e “empreguista”. Concluia-se que os três últimos presidentes eleitos pelo voto democrático não passavam de democratas sem democracia.

Após classificar a “Revolução” como “irreversível”, o inquilino do triplex da página 4, com sacadão e vista para as montanhas, esclarece que, no período Jango, vivia-se “dias tenebrosos”. A democracia, portanto, era o tempo das trevas.

Despedimo-nos do professor Dale Coutinho tendo ainda nos ouvidos o eco de suas últimas palavras — “o Brasil Grande de amanhã já desponta no horizonte auspicioso de nossa Pátria” — e seguimos viagem. Costeamos a ambientalista manchete da página 5: “Geisel: Revolução é árvore que brotou de boa semente”. Geisel é o Orlando anterior, irmão do Ernesto. Na verdade, é a sua Ordem do Dia como ministro do Exército. Informa-nos que a Revolução de 64 é algo demasiadamente maravilhoso para ser desfrutado por apenas um povo. Diz que a história haverá de registrar o significado que teve “para a preservação da democracia e da paz universal”.

Com o orgulho acelerando as batidas do coração, singramos colunas para arribar à página 6. “A meta da Marinha é valorização do homem”, é a manchete. No timão, o ministro da pasta, Adalberto de Barros Nunes descreve o pré-1964, época crivada de recifes de “doutrinas desagregadoras” e tsunamis de “conseqüências desastrosas”, consequências de uma administração “incapaz e desonesta”. Agora, porém, tudo está nos conformes. Tranquilizados, seguimos adiante. Rumando ao Sul, ainda na 6, saltamos na segunda manchete: “Aeronáutica: objetivos foram atingidos” reluz o título. À nossa espera, o ministro Márcio de Sousa Mello. Que alerta sobre os “maus brasileiros” e os “extremistas impatrióticos” que querem atrapalhar “o destino do Grande Brasil democrático”.

Embora seja inegável o fervor democrático do brigadeiro Mello, convém registrar que tal afeição é nada se comparada àquela de seu amigo e ex-chefe de gabinete, João Paulo Moreira Burnier. A devoção de Burnier foi tanta que planejou explodir, simultaneamente e na hora do pico, uma adutora e o gasômetro do Rio com o que democratizaria mais de meio milhão de brasileiros. Que, por certo, subiriam ao céu gratos por enfim conquistarem a democracia. Ainda na mesma página, o exército retorna, ensejando o sublime congraçamento das três armas. É a vez das tropas do Estado, aquarteladas no rodapé: “II Exército festeja a Revolução em SP”. Mais um instantâneo nesta viagem nostálgica a tempos de paz e harmonia.

Mas o percurso pela democracia absoluta não pode parar. E ancoramos na página 7. “Revolução é lembrada nas escolas” domina a página. É a única matéria. Sabe-se ali que a prefeitura instituíra a “Semana da Revolução”. E mensagem lida em todas as escolas definia o 31 de março como “uma autêntica festa popular em São Paulo”.

Rompemos a dobra e fundeamos na 8 para esbarrar na manchete “Todo o País comemora a Revolução de 31 de Março”. Oito colunas, de um lado a outro. Peça modelar do jornalismo investigativo, repara que o governador nomeado do Paraná, mas nem por isso menos democrático, Paulo Pimentel, também acha o regime “irreversível”. No Rio Grande do Sul, não menos nomeado e não menos democrata, Peracchi Barcellos ordena que todas as escolas festejem a data. Sincera porém lerda, a democracia peracchiana é suplantada pela pernambucana. O jornal informa que lá “cerca de 340 mil estudantes estão comemorando desde ontem o aniversário da Revolução…” Em todos os estados, inaugurações, missas, saraus, discursos, salva de canhões, farras e fanfarras.

A última escala da expedição é na coluna social de Tavares de Miranda. Instalado na página 2 do caderno de variedades, o colunista colocou suas teclas à serviço da democracia. Lembra que “o terceiro governo da Revolução tem, agora, como CHEFE SUPREMO (em caixa alta) o presidente Emílio Garrastazu Médici”. E lastima: “Imorredoura saudade para os que se foram: Humberto de Alencar Castello Branco e meu amigo Arthur da Costa e Silva”. Com seu estilo cativante, Tavares exalta o charme, o veneno e o algo mais do AI-5. Trata-se de formoso instrumento de aperfeiçoamento da democracia “endossado pelo povo”. E adverte que agora “escreveu não leu… pumba…”

Após este “pumba”, nosso Tavares arremete contra a antidemocrática imprensa estrangeira, notadamente The Washington Post, que “teve a audácia de chamar nosso presidente Médici de retardado mental”. E as redações do londrino The Observer e do parisiense Le Monde estão “à serviço do comunismo internacional”. Pois desfecharam uma “guerra da infâmias e mentiras” contra “o Brasil Novo”, na qual o governo é descrito como sendo de “torturadores e de eletrocutadores, inclusive de crianças”. Tavares afiança que a nação encontrou o seu caminho que “é o da Democracia, da Honra e da Lei”. E arremata: “Positivamente ISTO É O NOVO BRASIL. E estamos conversados”.

Assim, conversados, chegamos ao final da travessia. Radiantes por romper as trevas da ignorância, obra do arrojado libelo contra a opressão que acabamos de percorrer. Foram seis manchetes, inclusive a da capa, sete páginas, centenas de frases e milhares de letras em marcha pela democracia. Tal poema sob vestes de jornalismo, mais digno do bronze do que do miserável papel, foi esculpido pela Folha de S. Paulo.

FSP- capa - 31-3-1970

Finalmente comprovamos que aquilo que suspeitos acadêmicos pensavam ser uma ditadura era, na verdade, uma democracia em flor. Graças à valentia da Folha e de seu comandante Octávio Frias de Oliveira, que hoje batiza a ponte estaiada que – veja-se a justiça poética – conecta-se à avenida Roberto Marinho, outro titã na trincheira dos democratas. Enquanto ponte, Frias sobrevoa o rio Pinheiros, santuário ecológico que, todas as tardes, oferece o alegre espetáculo da revoada das muriçocas que habitam suas margens beijadas pela água cristalina.

Claro que os eternos insatisfeitos dirão que a edição evidencia um pornográfico exemplo de capachismo terminal. Pretenderão rebaixar à mera obscenidade páginas de lirismo que somente por excessiva modéstia de seus autores não os conduziram à Academia Brasileira de Letras. Falarão em partilha de lençóis entre o matutino dos Frias e a alta cúpula militar. Nada de novo sob o Sol. São os patrulheiros de sempre, inocentes úteis, cegos por ideologias espúrias. Tenhamos compaixão. E aproveitemos a lição heróica da Folha, cuja bravura também está presente em seus confrades O Globo, Estadão e tantos outros. Afinal, quem, além destes audazes, poderia nos informar sobre a diferença entre uma ditadura e uma democracia? Vamos dormir que a mídia vela por nós.

Ayrton Centeno é jornalista./sul-21