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A reforma trabalhista e o dano extrapatrimonial

O projeto da reforma usa o parâmetro salarial para estabelecer os valores de indenização por danos morais, sem considerar as peculiaridades de cada caso.

 

Por Marcelo Baltar Bastos* e Miriam Carla Lemos**

Muito se tem discutido sobre a proposta de reforma trabalhista (PL 6.787/16) que tramita no Congresso Nacional. Tal projeto propõe mudanças radicais na seara juslaboral, com alteração em 117 artigos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Dentre essas mudanças propostas, tem-se a criação do “Título II – A – Do dano Extrapatrominal”, inserindo na CLT os artigos 223-A ao 223-G.

A noção de dano para a legislação brasileira é definida no Código Civil de 2002, nos artigos 186 e 187. Segundo esses artigos, aquele que por ação ou omissão voluntária, negligência, imprudência ou imperícia causar dano a outrem, violando-lhe os direitos, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. A ilicitude do ato também ocorre quando, no exercício de direito próprio, alguém se excede manifestamente quanto aos limites impostos pelo fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. Nesses casos, esse mesmo Código prevê, no artigo 927, o dever de reparar o dano, isto é, indenizar para suprir à parte prejudicada a sensação de perda ou prejuízo, seja este de cunho pecuniário, material ou moral.

Quando se discute a natureza do dano e a respectiva reparação, se de cunho patrimonial ou extrapatrimonial, aborda-se se a lesão foi causada ao patrimônio do indivíduo, gerando-lhe prejuízos materiais, sendo, portanto, devida a indenização patrimonial; ou se foi lesionada a pessoa do indivíduo, afetando-lhe aspectos morais, existenciais, psicológicos e outros não apreciáveis de forma mais direta e objetiva, sendo, assim, intangíveis. Tal intangibilidade não apenas dificulta a formação de provas, mas também a apreciação do dano e atribuição de valores econômicos a ele. Para o STJ e o TST, o dano moral:

“Na concepção moderna da reparação do dano moral, prevalece a orientação de que a responsabilidade do agente se opera por força do simples fato da violação, de modo a tornar-se desnecessária a prova do prejuízo em concreto.” (Resp. 173.124, 4ª. Turma, Rel. Ministro César Asfor Rocha, julgado em 11.09.2001, DJ: 19.11.2001).

“O dano moral caracteriza-se pela simples violação de um direito geral de personalidade, sendo a dor, a tristeza ou o desconforto emocional da vítima sentimentos presumidos de tal lesão (presunção hominis) e, por isso, prescindíveis de comprovação em juízo (Dallegrave Neto, José Affonso, Responsabilidade Civil no Direito do Trabalho, 2ª ed. SP: LTr, 2007, p. 154). Daí prescindir, o dano moral, da produção de prova, relevando destacar cabível a indenização não apenas nos casos de prejuízo, mas também pela violação de um direito. (TST, Processo Nº RR- 400-21.2002.5.09.0017; Rel. Min. Rosa Maria Weber; DEJT 11/06/2010)

Essa concepção de reparação de danos estende-se também a várias áreas do direito, entre elas, o Direito do Trabalho que, na definição de Maurício Godinho Delgado, é o “complexo de princípios, regras e institutos jurídicos que regulam, no tocante às pessoas e matérias envolvidas, a relação empregatícia de trabalho, além de outras relações laborais normativamente especificadas”1. A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 7º, garante direitos aos trabalhadores urbanos e rurais que visem à melhoria de suas condições sociais. A Carta Magna endossa, então, a Consolidação das Leis de Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei 5.452, de 1º de maio de 1943 e vigente até a atualidade.

Segundo explica Clayton Reis2 no artigo A Reparação do Dano Moral no Direito Trabalhista:

O direito do trabalho é o ramo jurídico em cujo ambiente o estudo do dano moral deveria alcançar seu máximo desenvolvimento, em face da dimensão que assume na defesa dos valores contidos na pessoa do trabalhador – principio Constitucional da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III da CF/88). Nesse caso, se encontram em jogo a sua personalidade, os seus bens pessoais, a sua dignidade, privacidade e outros bens de valor que são relevantes. Esses valores pessoais se sobrelevam quando aludem ainda à dignidade do trabalho, principio basilar dos direitos sociais prescritos no artigo 5º, inciso XIII e caput do artigo 6º da Carta Magna.

(Revista Eletrônica TRT- Paraná. Dano Moral Agosto de 2013).

Alice Monteiro de Barros3, citada pelo autor do artigo referido acima, afirma:

“Incorre na compensação por danos morais o empregador que atribui ao empregado acusações infundadas lesivas ao seu bom nome; dá informações desabonatórias e inverídicas a alguém que pretende contratá-lo; comunica abandono de emprego em jornal, embora conheça o endereço do empregado; assedia-o sexualmente, inclusive com chantagem; investiga-o para conhecer suas atividades políticas e sindicais; realiza inspeções corporais desrespeitosas, com gracejos e ameaças; exerce investigação sobre aspectos da vida pessoal do obreiro, sem que possua relevância para a atividade que está executando”. Portanto, uma série de medidas que ultrapassam os limites do exercício regular de um direito e, que ofendem o principio da dignidade da pessoa humana, vulnerando inclusive, os direitos da personalidade. É inconteste que, em tais casos, estejam corporificados a presença dos danos morais.

Ambos os autores ressaltam a relevância do dano moral na esfera trabalhista porque o trabalho é atividade inerente ao desenvolvimento, seja este econômico, seja humano. Não é raro encontrar em meio à convivência social cotidiana alguém que já sofreu ou sofre algum tipo situação que possa gerar direito à reparação por dano moral, mas que, por depender estritamente de seu trabalho para a sobrevivência própria e de sua família, suporta tal condição. Posteriormente, quando o vínculo empregatício é rompido, a pessoa busca judicialmente indenização por situações sofridas ao longo da duração do contrato de trabalho. Por serem atitudes variadas e decorrentes das mais diversas situações, desde acidentes de trabalho até assédio moral, e estas gerarem consequências distintas para cada caso concreto, não é possível estabelecer um valor imediato para suprir os males causados por tal convivência em razão do emprego. Devendo, então, a indenização a título de reparação ser analisada pelo juiz responsável pela causa.

Contudo, a proposta de reforma trabalhista, já aprovada na Câmara dos Deputados, propõe, dentre outras coisas, que o acordado entre as partes, patrão e empregado, prevalece sobre o legislado – determinado pelas leis vigentes –, ou seja, ela estabelece um contrassenso nessa relação. Segundo o projeto da reforma, os danos extrapatrimoniais deverão ser estabelecidos conforme a gravidade do dano e receberão apreciação pecuniária previamente definida pela quantidade de vezes – de no máximo 50 em casos extremos, considerados gravíssimos – do valor do salário do trabalhador. Essa determinação impede a apreciação e a valoração jurídica de outra forma pelo juiz que, obrigatoriamente, deverá avaliar 12 itens para conceder ao reclamante o dano judicialmente pleiteado.

Segundo o projeto, no Título II-A – Do Dano Extrapatrimonial- no Art. 223-A: “aplicam-se à reparação de danos de natureza extrapatrimonial decorrentes da relação de trabalho apenas os dispositivos deste Título”. Nota-se o caráter cerceador do dispositivo legalmente proposto acima, o qual dispõe que apenas o que nele for determinado deve ser objeto de reparação de danos de natureza extrapatrimonial. Mais adiante, a proposta indica que:

Art. 223-G. Ao apreciar o pedido, o juízo considerará:

I – a natureza do bem jurídico tutelado; II – a intensidade do sofrimento ou da humilhação; III – a possibilidade de superação física ou psicológica; IV – os reflexos pessoais e sociais da ação ou da omissão; V – a extensão e a duração dos efeitos da ofensa; VI – as condições em que ocorreu a ofensa ou o prejuízo moral; VII – o grau de dolo ou culpa; VIII – a ocorrência de retratação espontânea; IX – o esforço efetivo para minimizar a ofensa; X – o perdão, tácito ou expresso; XI – a situação social e econômica das partes envolvidas; XII – o grau de publicidade da ofensa.

§ 1º Se julgar procedente o pedido, o juízo fixará a indenização a ser paga, a cada um dos ofendidos, em um dos seguintes parâmetros, vedada a acumulação:

I – ofensa de natureza leve, até três vezes o último salário contratual do ofendido; II – ofensa de natureza média, até cinco vezes o último salário contratual do ofendido; III – ofensa de natureza grave, até vinte vezes o último salário contratual do ofendido; IV – ofensa de natureza gravíssima, até cinquenta vezes o último salário contratual do ofendido.

(Câmara dos Deputados- Redação final- projeto de Lei Nº 6.787-B DE 2016)

Evidentemente, por se tratar o dano moral de uma apreciação imaterial, impor tais condicionantes ao Poder Judiciário é não respeitar o princípio da equidade nas relações contratuais, igualando, assim, todas as condições possíveis a uma apreciação subjetiva limitada por critérios amplos previamente estipulados e com base no valor do salário do trabalhador. Seria irônico e trágico pensar que, num contexto extremo, a morte em serviço de um funcionário que recebe R$ 20.000,00 ao mês como salário geraria como indenização o valor equivalente a R$ 1.000.000,00 e de um trabalhador assalariado, com rendimento mensal de R$ 1.000,00, receberia, nas mesmas circunstâncias, R$ 50.000,00 para suprir as necessidades da família que restou sem, muitas vezes, sua fonte de subsistência.

Em sentido oposto à proposta de lei formulada, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem buscado adequar os valores das condenações em danos morais à realidade de cada situação fática. Para tanto, tem adotado em seus julgados o chamado método bifásico para analisar a adequação de valores referentes à indenização por danos morais. Esse método visa analisar, a princípio, um valor básico a ser arbitrado a título de indenização, levando em consideração o interesse jurídico lesado, com base em precedentes apreciados pela Corte anteriormente, sem situações análogas. Ato contínuo, o julgador chega à indenização definitiva ajustando o valor básico elevando-a ou diminuindo-a, de acordo com as circunstâncias específicas do caso.

O objetivo desse método bifásico é estabelecer um ponto de equilíbrio entre o interesse jurídico lesado e as peculiaridades fáticas de cada caso, de modo a permitir que arbitramento seja o mais equitativo possível. Tal método tem mostrado o que atende às exigências de um arbitramento equitativo de indenização por danos extrapatrimoniais. Como se evidencia a seguir:

RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE DE TRÂNSITO. MORTE. DANO MORAL. QUANTUM INDENIZATÓRIO. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. CRITÉRIOS DE ARBITRAMENTO EQUITATIVO PELO JUIZ. MÉTODO BIFÁSICO. VALORIZAÇÃO DO INTERESSE JURÍDICO LESADO E DAS CIRCUNSTÂNCIAS DO CASO.

1. Discussão restrita à quantificação da indenização por dano moral sofrido pelo esposo da vítima falecida em acidente de trânsito, que foi arbitrado pelo tribunal de origem em dez mil reais.

2. Dissídio jurisprudencial caracterizado com os precedentes das duas turmas integrantes da Segunda Secção do STJ.

3. Elevação do valor da indenização por dano moral na linha dos precedentes desta Corte, considerando as duas etapas que devem ser percorridas para esse arbitramento.

4. Na primeira etapa, deve-se estabelecer um valor básico para a indenização, considerando o interesse jurídico lesado, com base em grupo de precedentes jurisprudenciais que apreciaram casos semelhantes.

5. Na segunda etapa, devem ser consideradas as circunstâncias do caso, para fixação definitiva do valor da indenização, atendendo a determinação legal de arbitramento equitativo pelo juiz.

6. Aplicação analógica do enunciado normativo do parágrafo único do art. 953 do CC/2002.

7. Doutrina e jurisprudência acerca do tema.

8. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. (RECURSO ESPECIAL Nº 959.780 – ES (2007/0055491-9 – RELATOR : MINISTRO PAULO DE TARSO SANSEVERINO)

Percebe-se, portanto, que a proposta de tabelamento formulada no projeto da reforma trabalhista não traz tal equidade, na medida em que utiliza o parâmetro salarial para estabelecer os valores de indenização por danos morais, sem levar em consideração as peculiaridades de cada caso. Vale destacar que os critérios de análise estabelecidos pela norma do artigo 223-G são para o enquadramento da ofensa como leve, média, grave e gravíssima, havendo limitações dependendo de cada enquadramento.

Machado de Assis, grande analista da alma humana, na obra clássica Memórias Póstumas de Brás Cubas, narra uma cena, fictícia, mas plenamente relacionada ao comportamento social ainda vigente, em que o personagem atribui o valor de um ato heroico que lhe salvou a vida à aparência humilde daquele que o salvara e não ao valor da própria vida em si. A avaliação, por consequência, foi gradativamente depreciativa, como se observa no trecho a seguir:

(…) O almocreve salvara-me talvez a vida; era positivo; eu sentia-no no sangue que me agitava o coração. Bom almocreve! Enquanto eu tornava à consciência de mim mesmo, ele cuidava de consertar os arreios do jumento, com muito zelo e arte. Resolvi dar-lhe três moedas de ouro das cinco que trazia comigo; não porque tal fosse o preço da minha vida, — essa era inestimável; mas porque era uma recompensa digna da dedicação com que ele me salvou. (…) Fui aos alforjes, tirei um colete velho, em cujo bolso trazia as cinco moedas de ouro, e durante esse tempo cogitei se não era excessiva a gratificação, se não bastavam duas moedas. Talvez uma. Com efeito, uma moeda era bastante para lhe dar estremeções de alegria. Examinei-lhe a roupa; era um pobre-diabo, que nunca jamais vira uma moeda de ouro. Portanto, uma moeda. (…) Olé! exclamei. — Queira vosmecê perdoar, mas o diabo do bicho está a olhar para a gente com tanta graça… Ri-me, hesitei, meti-lhe na mão um cruzado em prata, cavalguei o jumento, e segui a trote largo, um pouco vexado, melhor direi um pouco incerto do efeito da pratinha. Mas a algumas braças de distância, olhei para trás, o almocreve fazia-me grandes cortesias, com evidentes mostras de contentamento. Adverti que devia ser assim mesmo; eu pagara-lhe bem, pagara-lhe talvez demais. Meti os dedos no bolso do colete que trazia no corpo e senti umas moedas de cobre; eram os vinténs que eu devera ter dado ao almocreve, em lugar do cruzado em prata.

(Machado de Assis, Memórias Póstumas de Bras Cubas, capítulo XXI – o Almocreve)

A crítica social traçada pela literatura do século XIX, hoje aplica-se analogamente ao trabalhador submetido à proposta da reforma que, assim como o almocreve do romance, terá de contentar-se com a apreciação limitada e depreciativa de suas condições econômico-sociais, porque há o projeto de uma grande desvalorização de seu trabalho. Desvalorização essa que nem mesmo o Poder Judiciário Trabalhista – atuante no século XXI após árduas conquistas – poderá reverter caso a reforma seja aprovada. A comparação com a obra literária escrita em 1881 visa a reforçar o retrocesso a que está submetido o trabalhador diante do projeto da reforma trabalhista proposto em 2016, com mais de um século de diferença entre a obra literária e a realidade brasileira.

 

REFERÊNCIAS:

Araujo, Juliana Cristina Busnardo Augusto de. O Problema do Valor da Indenização por Dano Moral Devido à Pessoa Jurídica. Revista Eletrônica Tribunal Regional do Trabalho. V.2. Número 21. Agosto 2013.p.26

ASSIS. Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Porto Alegre, RS: L&PM,2008. p.98.

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. São Paulo: LTr, 2017, p. 47.

REYS, Cleyton. A Reparação do Dano Moral no Direito Trabalhista. Revista Eletrônica Tribunal Regional do Trabalho. V.2. Número 21. Agosto 2013.p.78

 

1) DELGADO, Maurício Godinho, Curso de direito do trabalho, São Paulo, Editora LTr,, 2017, p. 47

2) Magistrado aposentado no Paraná. Professor. Mestre e Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná.

3) BARROS, Alice Monteiro de, Proteção à Intimidade do Empregado, São Paulo, Editora LTr, 1997, p. 167.

*Marcelo Baltar Bastos é advogado, professor de Direito Material e Processual do Trabalho da Dom Helder Escola de Direito, pós-graduado em Direito do Trabalho e Previdenciário, mestre em Direito e Instituições Políticas: Administração Pública, direitos e garantias fundamentais. **Miriam Carla Lemos é estudante de Direito do sétimo período da Dom Helder Escola de Direito e professora de Língua Portuguesa.