Outrora voz isolada, a TV aberta agora é obrigada a concorrer com o fenômeno das redes sociais.
Um gaúcho à moda antiga e homem do seu tempo na mesma medida. (Divulgação)
Por Alexis Parrot*
Meu pai reclamava, e com razão, da liberdade extrema que a Globo se permite na fabricação de seus produtos. Tudo que é regional é manipulado, podendo chegar ao ponto da descaracterização completa (vide o recente "branqueamento" de Salvador em Segundo Sol).
Gaúcho de São Borja, ele ficava na ponta dos cascos com o transplante que a TV fez ao deslocar a Casa das Sete Mulheres (e, consequentemente, toda a Guerra dos Farrapos) do pampa para a serra riograndense na minissérie homônima.
Outrora voz isolada e sem direito a contraponto, a TV aberta agora é obrigada a concorrer diretamente com a influência dos canais por assinatura e, mais ainda, com o fenômeno das redes sociais – onde individualidades comentam e criticam não apenas a realidade, mas também a programação com que nos brinda a televisão tradicional.
É principalmente a juventude, mas não só ela, que está debandando do sofá em frente à telinha para se conectar a monitores e smartphones, as ferramentas com que passamos a gerenciar nossa relação com o mundo. Quem matou Odete Roitman causaria hoje menos interesse do que o frisson que antecede a publicação do próximo vídeo do Whindersson Nunes.
Neste cenário de youtubers e vlogers, sobressai a presença de um comediante gaúcho e seu genial personagem, o Guri de Uruguaiana; um gaudério da fronteira, todo pilchado, que busca, com bom humor e presença de espírito, enaltecer as tradições gauchescas e a cultura do povo do Rio Grande.
Sucesso acachapante no Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina, lota teatros por onde passa. Com mais de três milhões de seguidores no facebook, porém, sem o mesmo alcance em termos nacionais, o Guri confirma o enorme fosso que separa a região sul do resto do país.
Personagem completo, com raízes firmes e mitologia própria, o Guri de Uruguaiana, como ele mesmo se define, é um "taura bagual por demais". Secundado pelo fiel escudeiro Licurgo (o único gaúcho emo) e sempre às voltas com os problemas de peso de sua patroa, a Silvia Helena, elegeu o Canto Alegretense (música emblemática de Nico e Bagre Fagundes) como leitmotivprincipal para suas estripulias, com versões que vão do reggae ao funk e à bossa nova.
Dono de uma sólida formação musical (integrou o grupo Canto Livre, nos anos 80) Jair Kobe, o vivente que incorpora o Guri, é daqueles artistas que acabam tendo que se render à própria criação, colocando a si mesmo em segundo plano.
Natural de um estado repleto de rivalidades (Grêmio e Internacional; pampa e serra; Porto Alegre e interior; as cidades de Pelotas e Rio Grande, entre outras) parece absurdo que, ao encarnar um uruguaianense, Kobe tenha escolhido como hino uma música que fale do Alegrete, criando ponte inédita entre dois municípios vizinhos que não se bicam desde tempos imemoriais.
Ao ignorá-la, o Guri zomba da rixa e a dessacraliza, criando comicidade onde ninguém poderia supor. Pelo inusitado, é daqueles grandes momentos da comédia, capazes de fazer até o general Bento Gonçalves se revirar no túmulo – de tanto rir.
Um gaúcho à moda antiga e homem do seu tempo na mesma medida, em seu canal do youtube, o Guri de Uruguaiana pode tanto criticar aquele índio velho que toma o chimarrão em cuia de porcelana, quanto discorrer longamente sobre regras de boas maneiras para usuários do whatsapp.
Observador atento de tudo que é moda, é capaz de confeccionar deliciosas paródias – traduzindo para o gauchês tudo que bomba na internet. Nas mãos do Guri, Despacito vira Aipim Frito; o Masterchef é Master Tchê; a série La Casa de Papel se desdobra em La Casa de Mate (a erva do chimarrão) e o hit Trem Bala da carioca Ana Vilela torna-se Tem Pala (um poncho sem gola, vestimenta típica do gaúcho da campanha).
Kobe é herdeiro de um formato de humor sustentado por personagens e bordões ("Mas que falta de opção!"; "Só se fala de outra coisa!"), reinante absoluto no Brasil até a década de 90 – um tempo pré-TV Pirata e antes do boom do standup comedy.
Na TV, foram Chico Anysio e Jô Soares os grandes nomes desse paradigma, herdeiros, por sua vez, da tradição do rádio, onde marcaram época programas como Balança mas não cai e a Escolinha do Professor Raimundo, com seu cardápio de tipos cheio de carisma.
Fortemente presentes no imaginário popular, são lembrados até hoje e alvo constante de revivals na televisão – representantes de um humor que, mesmo nem sempre politicamente correto, não agride e não envelhece. É neste terreno que transita Kobe e o seu Guri.
Há alguns anos, a Globo interessou-se em integrar o personagem ao elenco do Zorra Total. Com tudo acertado, Kobe resolveu não ir. Deu-se conta do que queriam: reduzir o Guri à encarnação da piada velha e desbotada (e sem graça) que questiona a masculinidade do gaúcho.
Era a Globo simplificando o mundo e sendo condescendente com o público. O que Kobe fez é mais raro: abriu mão da visibilidade nacional em nome da integridade de sua criação. Tomada a decisão, montou no seu ginete e retornou ao Rio Grande sem olhar para trás, "mais faceiro que mosca em tampa de xarope".
Primo irmão do Analista de Bagé e o bisneto mais engraçado do Capitão Rodrigo Cambará, o Guri de Uruguaiana é universal justamente por não abrir mão de seu regionalismo, aquilo que o torna único e eterno. Mazáh!
*Alexis Parrot é diretor de TV e jornalista. Escreve sobre televisão às terças-feiras para o DOM TOTAL.