A religião pode desempenhar um papel na proteção das mulheres. Qualquer ataque contra o corpo humano é um ataque contra o próprio Cristo.
Mulheres realizam atos em luta por igualdade em Curitiba no Dia Internacional da Mulher em março de 2018. (Gibran Mendes/ Fotos Públicas)
Por Filipe Domingues*
Tauane Morais, de 23 anos, foi esfaqueada até a morte em 6 de junho de 2018, assassinada pelo ex-marido que disse estar "insatisfeito com o rompimento da relação". O crime aconteceu em Samambaia, uma cidade do Distrito Federal, a cerca de 29 quilômetros de distância da capital nacional de Brasília.
Foi um ato de violência que poderia ter sido evitado.
Apenas três dias antes de sua morte, a senhora Morais foi agredida pelo marido, Vinícius Rodrigues de Sousa, de 24 anos. Na presença de seus filhos, de 2 e 4 anos, Vinícius espancou a esposa e tentou estrangulá-la. Os vizinhos ouviram o ataque e chamaram a polícia. O senhor Rodrigues foi preso. Mas apenas por um dia.
Os vizinhos disseram à polícia que o casal brigava com frequência. Morais descreveu a violência dos ataques de seu marido à polícia, contando como durante as lutas, o senhor Rodrigues cortou as cortinas com uma faca e quebrou os móveis da casa, a geladeira da família e a televisão.
Apesar dessa evidência de raiva, o juiz Aragonê Nunes Fernandes não considerou necessário manter o senhor Rodrigues preso, impondo apenas “medidas de proteção” para limitar seu acesso à senhora Morais. As medidas não foram suficientes. Depois de matar sua ex-esposa, Rodrigues tentou em vão suicidar-se. Em 14 de novembro, foi condenado a 30 anos de prisão.
A morte de Morais é um exemplo notório de um horror cotidiano no Brasil e em outros estados latino-americanos: o crime de feminicídio. De acordo com a Organização Mundial de Saúde, o feminicídio é geralmente entendido como envolvendo o assassinato intencional de mulheres pelo fato de serem mulheres, mas definições mais amplas incluem qualquer assassinato de mulheres ou meninas.
Em 2017, pelo menos 2.795 mulheres foram vítimas de feminicídio em 23 países da América Latina e do Caribe. Isso é de acordo com uma pesquisa realizada pelo Observatório da Igualdade de Gênero, um escritório de uma comissão econômica das Nações Unidas que rastreia os homicídios de mulheres com 15 anos ou mais.
“O feminicídio é a expressão mais extrema da violência contra as mulheres”, disse Alicia Bárcena, secretária executiva da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe. Colocar um nome à violência e aumentar sua “visibilidade estatística” são passos importantes, mas “não foram suficientes para erradicar esse flagelo que nos abisma e assusta todos os dias”, acrescentou.
A comissão das Nações Unidas pediu às autoridades dos países da região que deem maior prioridade às políticas públicas destinadas a “prevenir, sancionar e erradicar” todas as formas de violência contra as mulheres.
O Brasil lidera a lista em termos absolutos, com 1.133 vítimas confirmadas em 2017. No entanto, El Salvador tem uma maior incidência per capita, atingindo 10,2 feminicídios por cada 100.000 mulheres. “Em 2016, Honduras registrou 5,8 feminicídios por 100.000 mulheres. Na Guatemala, República Dominicana e Bolívia, também foram observadas altas taxas em 2017, iguais ou superiores a 2 casos por 100.000 mulheres. Somente o Panamá, o Peru e a Venezuela registram taxas inferiores a 1,0 na região”, relata o observatório.
Muitos desses crimes podem ser descritos como “feminicídios íntimos”. Eles são cometidos por pessoas que são familiares ou muito próximas das vítimas. Uma jornalista católica e especialista em questões de gênero no Brasil, Karla Maria, disse à America Magazine que, infelizmente, os números não a surpreendem.
“É aterrorizante e perturbador que as mulheres sejam magoadas por pessoas que as amam, sejam essas pessoas seus companheiros, pais ou tios”, diz ela.
Maria é autora do livro Mulheres extraordinárias. No livro, relata as histórias de várias mulheres que encontrou em suas viagens pelo Brasil em que achou várias histórias de mulheres que sofriam abusos, incluindo muitas vítimas de violência.
Como católica, Maria diz acreditar que a religião pode desempenhar um papel na proteção das mulheres. Qualquer ataque contra o corpo humano é um ataque contra o próprio Cristo, diz ela.
“Compreender o quanto somos sagrados, porque Cristo vive em cada um de nós, pode libertar as mulheres deste ciclo de violência. Minha fé é um dos elementos do meu comportamento; agora, um estado secular deve pelo menos garantir segurança física e criar consciência entre as mulheres [para ajudá-las a falar]”.
Mas também foi por causa de sua religião que Amanda Barbosa Loiola diz que tolerou ser espancada pelo marido por cinco anos. "Eu vinha de uma família muito católica, então para mim havia apenas duas escolhas permanentes: tornar-se freira ou casar", diz Amanda.
Ela explica que “nunca teve a coragem” de revelar a violência em seu casamento e denunciar o comportamento do marido “porque a religião ainda era forte demais para mim. Assim como as grandes irmãs do sexo feminino resistiram, senti que tinha que suportar e lutar pelo meu casamento. Eu tive que aguentar tudo isso.
“Fui falar com um padre e ele também me disse isso”, diz ela. "Ele disse: ‘Minha filha, ore por seu casamento’. Então, eu cuidei desses sentimentos orando"
Seu pesadelo começou muito cedo. Apenas três meses depois do casamento, o marido, que já demonstrava um temperamento agressivo quando namorava com ela, ficou violento. Amanda tinha 21 anos nesse então.
“Eu estava lavando pratos. Ele me disse que sua irmã queria vir morar conosco e eu disse que não iria funcionar. Ele jogou o controle remoto nas minhas costas e um vaso de flores na minha cabeça. Essa foi a primeira agressão”, diz Loiola. “Ele pediu perdão, disse que me amava e que isso não iria acontecer novamente. Depois de dois meses, ele se tornou violento novamente”.
Agora uma assistente social, ela ajuda outras mulheres a sair de situações semelhantes. “A violência física ganha força a cada agressão. Começa com um empurrão, um tapa, um aperto, até que as coisas fiquem mais sérias. E antes da violência física existe a psicológica: chantagem, humilhação, constrangimento, ridicularização entre amigos, etc.”
Depois de alguns anos, Loiola descobriu que seu marido vivia uma vida dupla. Ele estava tendo um caso com outra mulher, e só então viu a necessidade de terminar. Depois de um processo doloroso que "parecia a Inquisição", ela conseguiu anular seu casamento.
“A verdade é que muitas de nós mulheres reproduzem esse tipo de machismo: pensar que a violência não é uma razão para terminar um relacionamento, mas a traição com outras mulheres pode ser. Eu terminei o relacionamento apenas depois disso. Mas foi muito difícil porque não tive nenhum apoio – nem da minha família nem das pessoas da minha paróquia. Nenhum, nenhum apoio”.
Loiola sofreu depressão e ansiedade, e tentou suicídio três vezes. Ainda assim, manteve sua fé apesar de tudo, mas nunca encontrou forças para apresentar uma queixa à polícia contra o marido.
Loiola acredita que muitas mulheres que estão presas em relacionamentos abusivos podem não saber que estão sendo vítimas de um crime porque suas vidas sociais não lhes dão as ferramentas necessárias para reconhecer o problema. “Embora muitas mulheres possam até identificar que estão sofrendo de um relacionamento abusivo, elas podem não entender que tal violência deve ser relatada. Elas acham que isso é parte de um relacionamento, que todo relacionamento é assim”.
Mas, segundo Maria, uma mudança cultural está acontecendo aos poucos e, em particular, as mulheres mais jovens da América Latina estão se sentindo mais encorajadas a denunciar a violência nos relacionamentos. “É como uma onda… Começamos a perceber que nossos companheiros ou parentes, os maiores agressores de acordo com os dados, não são donos de nossas vidas e de nossos corpos”, apontou ela.
Em sua opinião, a lei brasileira é agora bastante forte quando se trata de proteger as vítimas e punir os agressores. Por exemplo, em 2006, o país aprovou a inovadora Lei Maria da Penha. Maria da Penha tornou-se ativista dos direitos das mulheres depois que o marido quase a matou e a deixou paraplégica na década de 1980. A lei com o seu nome estabelece tribunais especiais e sentenças mais rigorosas para infratores e intensifica a punição por agressões domésticas.
Mas a aplicação cotidiana da lei ainda é muito fraca, e muitas vítimas de abuso doméstico permanecem com muito medo de apresentar uma queixa.
“O Brasil ainda não garante os mecanismos necessários para que, na prática, as mulheres se sintam protegidas e a salvo no momento da denúncia [contra seus agressores]”, diz Maria. Desde 1985, o Brasil mantém “delegacias da mulher”, unidades de polícias femininas que são frequentemente ocupadas por mulheres e se especializam em crimes cometidos contra mulheres com a finalidade de criar um ambiente mais acolhedor para as vítimas de crimes baseado em gênero. Contudo, Maria reclama que essas unidades especialmente treinadas não estão “em todos os distritos municipais, e as que existem não funcionam nos finais de semana e feriados”.
Ainda não está claro quão seriamente o novo governo federal do Brasil tratará a violência contra as mulheres. O presidente eleito Jair Bolsonaro tomou posse no dia 1º de janeiro e, como parte de sua agenda conservadora, tem uma pastora evangélica protestante encarregada do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Damares Alves diz que foi vítima de abuso em sua infância e se opõe fortemente à violência contra a mulher e ao aborto – duas questões que não são tipicamente relacionadas por organizações de mulheres no Brasil.
America Magazine – Tradução: Ramón Lara
*Filipe Domingues contribui para a America Magazine com artigos sobre o Brasil.
dom total///