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Preparemo-nos: pior que a ditadura?

Selvino Heck (*)

Flávio Koutzii deu uma estonteante, lúcida e imperdível entrevista: “A democracia acabou. Eu me sinto hoje um exilado no Brasil” (Marco Weissheimer, www.sul21.com.br, 12.01.19). “Como a democracia real depende de um certo grau de Estado de direito, o colapso deste impede a existência de um Estado de democracia. Ela levou um tiro no coração”, nas palavras de Flávio Koutzii, que lutou contra duas ditaduras, no Brasil e na Argentina, onde ficou preso entre 1975 e 1979.

Diz Flávio: “Quando até a rua é um pouco estranha e quando os caras com quem cruzares no bairro também despertam estranhamento e incerteza, chegamos a um ponto que dispensa maiores explicações. Eles não colocaram uma baioneta no nosso peito, mas há uma baioneta invisível nos espetando. Esse estranhamento na rua, no supermercado ou num restaurante expressa uma percepção que diz: esse não é meu lugar.”

A entrevista termina assim: “Hoje é muito pior que em 64. Naquela época, o inimigo era bem identificado, muitos vestiam uniforme. Hoje pode ser o vizinho de baixo. Em 64, o problema era com ‘os comunas’, os guerrilheiros. Hoje, homossexuais estão sendo perseguidos e atacados nas ruas. O racismo também está à solta. Não tem comparação, o que é algo horroroso de dizer.”

Moro no mesmo bairro do Flávio e às vezes nos cruzamos na rua ou no super. E tenho, muitas vezes, os mesmos sentimentos e sensações de Flávio. Não sofri os horrores da ditadura, prisão, tortura, exílio, mas fui duramente perseguido nos anos 1970. Mas não me lembro de ter sentido medo no cotidiano da vida, ou ‘baionetas invisíveis’ no dia a dia.

Minto, pelo menos numa situação senti medo. Anos 1974/75, eu era representante dos alunos da PUC-RS junto à Reitoria da Universidade. Reuniões e mais reuniões noite a dentro, e, muitas vezes, nove ou dez da noite, depois da última atividade, eu ia da Universidade até minha casa, a Vila Franciscana, na Rua Frei Germano, Porto Alegre, uns 10 minutos a pé. Era noite, escuro, tinha que pegar uma das pistas da Avenida Ipiranga, arroio Dilúvio no meio, passando pelo 18 RI, Regimento do Exército, que ficava ao longo do trajeto, ao lado da PUCRS. Olhava para os lados, para ver se era seguido, se havia alguém/algum carro ou movimento estranho.

O que me dava alguma tranquilidade no trajeto era uma guarita do Regimento do Exército,  esquina da Avenida Ipiranga com a rua Cristiano Fischer, já quase na Vila Franciscana, onde sempre havia um guarda, dia e noite. Eu me sentia de alguma forma protegido por alguém do Exército brasileiro, que pelo menos enxergaria se algo acontecesse.  Nunca me aconteceu nada pessoal ou fisicamente, em época de intenso movimento estudantil. A não ser, tempos de ditadura e repressão política, minha sumária expulsão da Universidade, onde cursava Teologia e Letras, em fins de 1975.  Era subversivo demais para os padrões da Universidade dos irmãos maristas, mesmo sendo eu frade franciscano.

Consequência dessa história, reviravoltas na vida, passei a morar na Lomba do Pinheiro em 1977, conjunto de vilas populares na periferia de Porto Alegre e Viamão, onde os franciscanos tinham há alguns anos um inédito trabalho de pastoral popular e organização do povo, morando no meio dos trabalhadores. Andava de cima para baixo, dia e noite, vila em vila, sem carro, tudo a pé, reuniões e mobilizações de todo tipo: CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), Pastoral da Juventude e Pastoral Operária, Associações de Moradores, lutas pelos problemas da comunidade, depois fundação do Partido dos Trabalhadores, Oposições Sindicais, CUT, MST, etc.

Nunca tive medo na Lomba do Pinheiro, período em que Flávio Koutzii estava preso na Argentina. Nem de circular, nem de abordar e reunir as pessoas, de conversar com todo mundo em todos os lugares possíveis e imagináveis: casas, igrejas, mercadinhos, sede das Associações de Bairro, na rua mesmo, ‘brigar’ com os prefeitos nomeados da capital ao lado da população e suas necessidades, fazer greves como a da construção civil em 1979. Nunca me senti seguido ou com medo nos afazeres cotidianos (embora muito tempo depois tenha descoberto as fichas, anotações e relatos a meu/nosso respeito e minhas/nossas atividades, feitas pela Brigada Militar, Polícia Federal, DOPS, SNI, que fui recuperar no Arquivo Nacional em Brasília.)

Na mesma Lomba do Pinheiro, hoje, 2019, onde continuo acompanhando as lutas, participo do Núcleo de Reflexão Política da Lomba, do Conselho Popular, das pastorais, os medos são dois, pelo menos: áreas/zonas onde ninguém pode/deve entrar sem autorização do tráfico; medo de que em algum beco, ou mesmo saída de reunião, alguém siga as/os militantes, saiba e acompanhe de perto suas atividades e resolva, em algum momento, por represália política, tomar alguma ‘providência’. Outros lutadores/as da Lomba, moradoras/es do bairro têm a mesma sensação, nunca antes sentida. Ou há nas vilas quem não queria conversar, ou quem olha os militantes de forma enviesada, ou vira a cara, ou até destrata/maltrata por razões políticas. Isso nunca aconteceu/acontecia nos anos 1970/1980.

É o exílio contemporâneo de que fala hoje Flávio Koutzii, perceptível no prédio onde se mora, nos mercados e bares do bairro onde se entra, nos vizinhos que a gente prefere evitar de se encontrar para não ter de puxar conversa, ou a conversa é apenas de e sobre amenidades. Ou, pior, quando se evita, em períodos eleitorais ou não, conversar com familiares e parentes próximos em redes sociais, ou encontrá-los em festas de final de ano. Ou se desiste de desejar-lhes bom dia, quando fazem ataques desnecessários, ou falam barbaridades e palavrões, ou ‘mandam para diferentes lugares’, pessoas com quem se tinha relacionamento próximo e com quem a política ou as posições políticas, embora eventualmente divergentes, nunca foram motivo de afastamento, de virar a cara, de não querer se encontrar, de não convidar para aniversários ou aceitar convites para qualquer coisa, um ‘churras, uma ‘caipa’, um ‘chima’ amigo, porque gente vai sentir-se mal, desconfortável. Ou prefere-se ficar quieto no seu canto, sem opinião, sem palavras, falando apenas trivialidades.

Tristes e terríveis tempos, em que a frase mais famosa, repetida em todos os lugares e situações, é ‘ninguém solta a mão de ninguém’, seja por razões de companheirismo político, seja, também, por razões de proteção física!

No mesmo Sul21, um dia depois da entrevista de Flávio Koutzii, mas ainda antes da liberação da posse de armas, Céli Pinto, Professora Titular do Departamento de História da UFRGS, escreve ‘Para além da demência’: “Não estaríamos longe da verdade se afirmássemos que abriram a porta do manicômio e jogaram o Brasil dentro.”

Que fazer? Onde e quando agir? Como não perder a esperança?

Escreve Céli Pinto: “As oposições e a maior delas, o Partido dos Trabalhadores, com seu grande líder preso, têm razões de sobra para estarem atônitas, mas não têm muito tempo para continuar assim. O futuro do país não está somente nas mãos de uma extrema-direita algumas vezes às portas da demência, também está nas mãos das oposições, na capacidade de se articularem e construírem uma frente ampla para começar a enfrentar os desastres.”

Da minha parte, queiram ou não, vou continuar indo na Lomba do Pinheiro e apoiar as lutas de seus moradores contra a falta de água, contra o desemprego que está crescendo, por transporte público de qualidade e serviços de saúde acessíveis a todas e todos, por respeito, dignidade e vida digna. Vou continuar atuando nas diferentes frentes de luta e organização popular, vou continuar presente nas pastorais sociais e no Movimento Fé e Política, vou continuar fazendo formação e trabalho de base, vou continuar defendendo os direitos dos mais pobres e exigindo democracia.

A ditadura de então um dia acabou, o golpe militar de 64 foi derrotado. A ditadura e os golpes de hoje também acabarão e serão derrotados, mais cedo ou mais tarde, porque ‘ninguém solta a mão de ninguém’. Haverá paz, justiça, liberdade, democracia.

(*) Deputado estadual constituinte do Rio Grande do Sul (1987-1990). Membro da Coordenação nacional do Movimento Fé e Política. Em dezoito de janeiro de dois mil e dezenove.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

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