CNBB lança campanha da fraternidade com tema sobre políticas públicas. Crédito: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Por Jacques Távora Alfonsin
Costuma-se denominar como campanhas aquelas ações humanas coletivas, reunindo gente disposta a conseguir, por exemplo, a criação de algum direito ou a remover algum impedimento contrário ao exercício de outro, previamente organizada e atuante em busca deste resultado.
Dependendo da motivação inspiradora e dos objetivos das campanhas, é frequente guardarem entre si até objetivos opostos e marcadamente conflitantes. A cada ano, na quarta feira de cinzas, início da quaresma, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) lança a Campanha da Fraternidade, estimulando cristãs e cristãos a se engajarem em ações conjuntas de apoio a determinados objetivos pastorais. A deste ano escolheu como tema “Fraternidade e Políticas Públicas” e como lema “Serás libertado pelo direito e pela justiça”, uma lembrança retirada do livro bíblico onde se recolheram algumas das afirmações do profeta Isaias, mais de sete séculos antes de Cristo.
Colocado fora de qualquer contexto histórico da época do profeta, do presente ou do futuro político de qualquer povo, o lema certamente não seria nem será contrariado por ninguém. Se for levado à prática das convivências humanas, porém, como já aconteceu no passado, ele só pode ser entendido e levado a resultados concretos, em contextos sociais de aberto conflito. Porque Isaias traduz o que sua afirmação genérica significa na prática:
“Ai dos que decretam leis injustas, e dos escribas que redigem sentenças opressivas, para afastar os pobres dos tribunais e negar direitos aos fracos do meu povo; para fazer das viúvas sua presa e despojar os órfãos.”
Comparado o lema da Campanha da Fraternidade de 2019 com o adotado pelo presidente do país “O Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”, há uma notória afinidade do primeiro lema com a posição do profeta Isaías, pelo que se pode ler no lançamento da Campanha, disponível na internet, e uma evidente infidelidade do segundo entre sua letra e sua execução. Se esse fosse o mesmo Deus de Isaias, avaliando-se o que está acontecendo por aqui, ele não estaria encolhido, sujeito a poucos, nem oprimindo muitos da maneira mais ilegal e injusta.
Quem sabe isso se deva a uma circunstância não estranha a nossa história passada, especialmente depois do golpe de 1964. São muitos os militares que se envergonham do que aconteceu então, alguns até pagando caro por isso. Como parte significativa do ministério montado agora pelo presidente é composta por militares, está parecendo que a campanha governamental de implementação das suas políticas públicas, se assim possam ser consideradas, adquiriu um caráter bélico voltado para defesa e proteção do que, a seu exclusivo arbítrio, constitui direito já que, de justiça, como a Campanha da Fraternidade sugere, essas políticas mostram-se bem longe de estarem interessadas. Em 1964 aconteceu o mesmo.
Já existe um farto elenco de provas dessa diferença abissal, entre o lema que inspira as políticas públicas (?) do governo e o da campanha da fraternidade. O escândalo de um ministro de educação, como Ricardo Vélez Rodríguez, ter tentado obrigar as nossas crianças cantarem o hino nacional e repetirem, filmadas em suas escolas, o lema de campanha eleitoral do presidente é uma delas, as cautelas contrárias da Constituição Federal, a respeito disso, mostrando claramente o fato. Injustiça contra estudantes, seus pais e mães, professoras/es, violação flagrante do direito social à educação laica, à liberdade de religião.
Do próprio super ministro da Justiça, Sergio Moro, já aparecem outras provas, duas delas mais recentes e convincentes. Ele era considerado a autoridade mais prestigiada do novo governo (?). Sua sentença de condenação do ex-presidente Lula foi elogiada até pelo presidente do TRF4, Carlos Eduardo Thompson Flores, estranha e sintomaticamente a mesma autoridade que, depois, manteve revogada pelo desembargador Gebran Neto a decisão do juiz Rogerio Favreto libertando Lula, antes das eleições de 2018…
Se isso ainda mantivesse alguma aparência de “prestígio” (?), pelo menos para um grupo de apoio do próprio governo, o ministro da justiça, menos de dois meses depois da sua posse, está derretendo. Nomeou a cientista política Ilona Szabó para compor o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, com certeza tentando mostrar a justa conveniência de se garantir naquele grupo uma visão plural do que compete ao mesmo decidir, já que ela tem uma visão reconhecidamente oposta às políticas públicas do novo governo. Viu-se forçado em seguida, de modo vergonhoso e constrangedor, a exonerar Ilona, recuando do seu intento, pela pronta reação do presidente que, segundo revelação do próprio Moro, nas desculpas pedidas à cientista, “o presidente Bolsonaro não sustentava a escolha na base dele” (site do Estadão de 1º de março). Se “vozes plurais” são tratadas como inimigas, até por familiares do presidente, como a mídia tem mostrado, nem direito, nem justiça, nem democracia, o ministro da justiça está conseguindo defender.
Sobre o caixa 2, também, que sustenta as campanhas eleitorais, e se sabe constituir uma das formas mais corruptas, com raras exceções, de fraudar as eleições e mascarar como democracia todo um regime de governo que leva esse nome, o ministro Sergio Moro está demonstrando esquecer tudo quanto já disse. Candidatos que não contam com este recurso malsão, inclusive pela honesta intenção de não se deixarem manipular depois por esse vício, disputam as eleições em notória desigualdade com outros que têm suas campanhas sustentadas por esse dinheiro. Enquanto juiz, o hoje ministro da justiça mostrava uma indignada posição política e ético-jurídica contra essa perniciosa e hipócrita enganação.
Surpreendentemente, recuou até daquilo pelo qual os cartazes das multidões que lhe dedicavam um verdadeiro culto, levavam a sua foto em adoração, como o guardião da moralidade, durante a campanha eleitoral. Mudou de opinião a respeito de uma questão desta relevância. Em entrevista ao jornal Zero Hora publicada na edição de 1º deste março, encimada por manchete notável, afirmou: “O crime de caixa 2 não é corrupção, porque não envolve contrapartida”…
Só pode ter confiado na ingenuidade ou na ignorância das/os leitoras/es, livrando-se visivelmente temoroso do tema (e do aperto em que já se meteu na companhia de quem anda no governo) de forma inusitada: “É um repasse de dinheiro ilegalmente a um agente político. É grave? É grave, nas não é a mesmo coisa que corrupção. A posição do governo é que ambos são situações criminais.”
Um assalto desse quilate ao mundo dos fatos, escondendo o caixa 2 em dribles técnico-penais, lembrados artificialmente como barreiras para jogar essa forma de poder corrupta na impunidade, sob o argumento de ela não viabilizar “contrapartida”, mesmo fazendo parte integrante de “situações criminais”, faz corar de vergonha qualquer do povo.
Imagine-se um político qualquer recebendo seu “financiador” depois de eleito e empossado: “E aí fulano, tu conheces aquela demanda da qual eu te falei durante a “nossa” campanha, não é? Como estás tratando dela? – Para o hoje ministro da Justiça aí não se está cobrando qualquer “contrapartida”, isso constitui só “situações criminosas”. Pode?
Nem um trimestre se venceu e a sociedade brasileira já pode se considerar ilegal e injustamente ferida em seus direitos, particularmente os sociais, pelo (des)governo que elegeu para sua frustração total. Contra o número crescente de inciativas tomadas hoje e revogadas amanhã, parece valer, da maneira mais atabalhoada e confusa que se possa imaginar, a advertência feita por quem faz parte do próprio mais alto escalão dessa sofrida república: “Eu acho que perde o Brasil. Perde o Brasil todas as vezes que você não pode sentar numa mesa com gente que diverge de você. O Brasil perde. Não é a figura A, B ou C. Perde o conjunto do nosso país e nós temos que mudar isso aí.”
São palavras do vice-presidente Mourão em entrevista concedida em 5 deste março ao jornal Valor econômico, sobre o recuo de Moro na exoneração de Ilona. Se for para mudar, então que se mude pelo menos para não se tomar o nome de Deus em vão, como o lema eleitoral do presidente está mostrando, e se garanta liberdade, pelo direito e pela justiça, ao povo vítima das suas políticas públicas, como aconselha a Campanha da Fraternidade deste ano.