Tanto apoiadores quanto críticos afirmam que o decreto representa um ‘passo fundamental’ para esvaziar o Estatuto do Desarmamento, de 2003.
Levantamento feito pelo Instituto Sou da Paz, com base em informações oficiais do Exército, de dezembro, aponta que o decreto assinado por Jair Bolsonaro (PSL-RJ) vai permitir que 255 mil CACs tenham permissão para andar armados. A medida facilita o porte de arma de fogo e o acesso a munições para caçadores, atiradores esportivos e colecionadores (CACs), além de praças das Forças Armadas com mais de dez anos de serviço.
Entre as principais mudanças, segundo o Planalto, está o aumento do limite de compra para 1 mil cartuchos (para cada arma de uso restrito) e para 5 mil (arma de uso permitido). Segundo Bolsonaro, o texto foi discutido por mais de dois meses. "Não é um projeto de segurança pública. É, no nosso entendimento, algo mais importante: um direito individual daquele que, por ventura, queira ter uma arma." O texto oficial do decreto não havia sido divulgado até as 23 horas.
No discurso, Bolsonaro destacou que os CACs terão permissão para transportar uma arma municiada e pronta para uso no trajeto entre a casa (ou o acervo) e o local das atividades. Embora essa autorização para atiradores já estivesse prevista em uma portaria do Exército, de 2017, ela ganha força com o decreto.
Importação
Segundo o presidente, o decreto também vai regulamentar a importação no País. "Nós quebramos também o monopólio e isso entra em vigor em 30 dias", afirmou. Hoje, a Taurus detém o mercado de armas. A taxação da atividade, porém, ainda será discutida. "Você não podia importar e, agora, acabamos com isso aí. Mesmo havendo similar aqui, você pode importar armas e munições", disse.
Outra mudança que aparece no texto do Planalto é que o porte passa a ser vinculado à pessoa, e não mais à arma. "Isso quer dizer que o cidadão não mais precisa tirar um porte para cada arma", diz o texto. O conceito de residência também deve mudar, com o porte passando a valer em toda a extensão da área particular. "Inclusive quando se tratar de imóvel rural, âmbito no qual o cidadão estará livre para a defesa de sua propriedade e de sua família contra agressão", afirma o governo.
Tanto apoiadores quanto críticos afirmam que o decreto representa um "passo fundamental" para esvaziar o Estatuto do Desarmamento, de 2003. Como é uma lei, no entanto, o estatuto só poderá ser alterado pelo Congresso. "Não temos mais uma política nacional voltada ao desarmamento", avaliou o presidente do Movimento Viva Brasil e líder do movimento pró-armas, Bene Barbosa. "O grande problema (do Estatuto) é que ele se tornou desconexo com a realidade social após o referendo de 2005."
Para Barbosa, o decreto responde a reivindicações antigas da classe de atiradores esportivos, que formou a base de apoio a Bolsonaro. "O acesso a 50 munições acabava fazendo com que o proprietário legal de uma arma de fogo não conseguisse treinar", afirmou.
Críticas
Pesquisadores e entidades de segurança pública defensoras do desarmamento criticaram as medidas. "Aos poucos, o presidente está desconfigurando o Estatuto", diz Rafael Alcadipani, professor da FGV-EAESP. Diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o sociólogo Renato Sérgio de Lima foi na mesma linha. "O governo vai autorizar vários segmentos a ter porte e ainda diminuir a fiscalização, na base da boa-fé", diz. "O Exército perde o poder de fiscalizar, vira só um lugar para registrar arma."
O Sou da Paz, também defensor do desarmamento, soltou nota em que diz que "o presidente beneficia um pequeno grupo de indivíduos em detrimento da segurança pública – uma vez que há impacto real na sociedade com 255 mil pessoas que poderão andar armadas nas ruas".
Ainda de acordo com o instituto, que usa dados obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI), o Exército tem hoje mais de 350 mil armas nas mãos de CACs. "São recorrentes os casos de desvio para o mercado ilegal." Outra crítica é à ampliação do limite de munições. "Em 2018, atiradores desportivos compraram mais munições do que as Forças Armadas do Brasil, não sendo plausível alegar que enfrentem uma escassez."
Registro de armas cresce apenas 3,6%
A política de liberalização da posse e do porte de armas do governo Jair Bolsonaro teve pouco impacto sobre o total de armas legais em circulação no País. É o que mostram os dados do Sistema Nacional de Armas (Sinarm) da Polícia Federal (PF). O total de armas registradas no País era no dia 30 de abril deste ano apenas 3,6% maior do que o total registrado pelo Sinarm em 30 de junho de 2018. A alta foi, no entanto, puxada pelos registros ativos feitos por pessoas físicas, que tiveram aumento de 5,7% no período.
Além do total de armas registradas no País, a PF também constatou em 2019 um aumento da média mensal de pedidos de novos registros e renovações de antigos. Nesse caso, o crescimento foi de 3,4%. Aqui também um número se destaca: é o de janeiro, logo depois da posse de Bolsonaro – pedidos de registros cresceram 118% no mês de janeiro em comparação com o mesmo período de 2018 alcançando 33.058. Mas o fenômeno perdeu força em fevereiro, que ainda registrou uma pequena alta, para depois ter quedas em março e em abril.
Clubes de tiro consultados pela reportagem – as armas de atiradores são registradas em outro sistema, o Sigma, do Exército – também não registraram grande aumento de procura – crescimento de até 10%. Não houve também nenhum impacto sobre o total de homicídios registrados nos País – há 17 meses eles estão em queda, um movimento que atinge 25 das 27 unidades da Federação. "A liberação não significou maior circulação de armas de fogo e, por isso, também não houve impacto nas mortes violentas no País", afirmou Renato Sérgio de Lima, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Para o pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo Bruno Paes Manso, os decretos de Bolsonaro não provocaram nenhuma corrida às armas, pois a maioria da população não tem ilusão de que ter uma arma em casa garantirá a sua segurança. "Além disso, o custo ainda é caro, os testes e treinos são obrigatórios e agora existe ainda a exigência de cofre. Tudo isso faz com que a solução para a segurança seja coletiva e pública e não individual", disse.
Provas
De acordo com o empresário Newton Ramos Publio, dono do clube de tiro Associação de Tiro e Caça Black Beard, em Pirapora do Bom Jesus, na Grande São Paulo, o decreto de janeiro de Bolsonaro não provocou nenhuma corrida de interessados por armas ao clube. "Cresceu uns 10% o movimento", afirmou.
O clube de Publio tem 1,8 mil sócios que devem fazer pelo menos oito visitas por ano ao lugar para treinamento e participar de pelo menos quatro provas regionais ou nacionais de tiro a fim de receberem o certificado do clube de atirador esportivo.
"Quem quiser começar hoje terá de gastar cerca de R$ 6 mil para comprar a arma, fazer o treinamento e o testes psicotécnico, além de apresentar as certidões criminais negativas." Além disso os interessados terão de pagar mensalidade ou anuidade que varia de clube para clube, mas que fica entre R$ 500 e R$ 1 mil. Além de atiradores e caçadores, Publio tem entre seus clientes policiais.
A reportagem obteve os dados da PF por meio da Lei de Acesso à Informação – parte em 2018 e parte em 2019. Eles mostram que a unidade da Federação com maior número de armas ativas registradas no Sinarm nas mãos de pessoas físicas é o Rio Grande do Sul, com 55.676 registros. São Paulo ocupa o segundo lugar, com 48.764, e Santa Catarina fica em terceiro lugar, com 35.755. O Rio de Janeiro registra apenas 13.322 armas de fogo com pessoas físicas, segundo os dados da PF.
Quedas
Apenas 4 das 27 unidades da Federação tiveram queda de registros ativos de armas de fogo de 2018 para cá: Acre, Alagoas, Amazonas e Ceará. Por fim, São Paulo é onde existem mais armas nas mãos de seguranças privados: 61.095. Aqui o Rio aparece em segundo lugar, com 21.227 armas nas mãos de seguranças particulares – a responsabilidade pela fiscalização de empresas de segurança é da Polícia Federal.
Agência Estado/dom total///