A sensação é de que a TV brasileira vive numa realidade paralela.
A tarde inteira do noticiário foi ocupada com detalhes, especulações, análises, repercussões e suspeitas em torno da queda do avião (Pixabay)
Por Fernando Fabbrini*
Esta semana, um jovem artista foi vítima de um trágico acidente. Cantor popular de forró, em plena ascensão, cheio de planos, morreu num desastre aéreo. Muito triste. Seja pela juventude interrompida, pelos planos desfeitos, pela inversão da ordem natural das coisas. Idosos é que morrem, jovens são imortais, não é assim?
Em outros tempos, seria apenas mais uma notícia triste, um fato lamentável. No entanto, a cobertura da TV nos faz pensar que alguma coisa muito estranha está sucedendo dentro das redações jornalísticas. Parece que a notícia – produto original da comunicação – vai ficando cada vez mais inflada, enfeitada e espetaculosa – muito menos no intuito de relatar os fatos e muito mais para manter o espectador diante da tela pelo maior tempo possível, a qualquer custo.
A tarde inteira do noticiário foi ocupada com detalhes, especulações, análises, repercussões e suspeitas em torno da queda do avião e da morte de seus três ocupantes. De cara, âncoras citaram preocupação quanto ao possível conteúdo da caixa-preta. O dispositivo – meu Deus! – só faz parte da equipagem de aeronaves de maior porte, e jamais de um pequeno Piper Cherokee, renomado e confiável avião de treinamento e turismo, que formou tantos pilotos mundo afora. Após inúmeros acidentes aéreos, já era tempo dos jornalistas saberem disso.
Na sequência, informaram – alarmados – que a aeronave “estava proibida de fazer táxi aéreo”. Por pouco transformariam esse pormenor normativo em tenebrosa e fatalista falha imperdoável, como se determinadas classes de aeronaves ou modalidades de voo estivessem a salvo de qualquer tipo de acidente.
Outro repórter fez plantão diante do Cenipa de Recife. Sentindo-se portador de um furo de reportagem, relatou que os oficiais daquela entidade "tinham ido para casa descansar e que, de prontidão, aguardavam novas ordens para viajar ao local do acidente". Só faltou dizer o que levariam nas malas. Quantas cuecas, pijamas, meias? De quais cores? Como se chamavam as esposas desses oficiais? Eram felizes na profissão? Já tinham filhos na universidade? Assim, o jornalismo atual televisivo vai enchendo o seu tempo com informações absolutamente inúteis, cosméticas e despropositadas.
A sensação de que a TV brasileira vive numa realidade paralela foi coroada pelo depoimento de uma conhecida comentarista da área de cultura. No auge da cobertura, emocionada, ela afirmou que o jovem artista falecido tinha "revolucionado a linguagem da música popular brasileira com o estilo de seu hit de sucesso".
Ora: independentemente de gostos musicais (respeito todos) e sem nenhum intuito de criticar a obra do jovem cantor falecido, apenas perguntaria: será que os versos “o nome dela é Jenifer/ encontrei ela no Tinder/ ela não é minha namorada/ mas poderia ser” foram capazes de promover uma revolução de tal monta em nosso rico e poético repertório musical?
Na mesma noite, para fechar o circo de horrores, veio o inacreditável. Um dos maiores sites jornalísticos do Brasil publicou a seguinte manchete: “Campina Grande cancela show de Gabriel Diniz após sua morte”. Nossa! Mesmo? Depois de algumas horas no ar, alguém percebeu o mico – e trocaram depressa.
*Fernando Fabbrini é roteirista, cronista e escritor, com quatro livros publicados. Participa de coletâneas literárias no Brasil e na Itália e publica suas crônicas também às quintas-feiras no jornal O Tempo.
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