Jesuíta afirma que as sucessivas emendas enganam o povo e favorecem a corrupção que galopeia em todos os quadrantes da ‘pátria amada, Brasil.
João Roque Rohr SJ receberá o título Doctor Honoris Causa. (Divulgação)
Por Gilmar Pereira
Equipe Dom Total
Um dos mais respeitados jesuítas do país, padre João Roque Rohr dedicou a maior parte de sua vida à educação e à luta ao combate às mazelas que afligem o povo brasileiro. Formado em filosofia, teologia e pedagogia, o catarinense esteve à frente de diversas instituições de ensino e colaborou com a criação de políticas públicas sobre o tema. Em 13 de setembro, durante o 2º Congresso do Conhecimento promovido pela Dom Helder Escola de Direito e Escola de Engenharia de Minas Gerais (Emge), João Roque Rohr SJ receberá o título Doctor Honoris Causa, o primeiro a ser concedido pela instituição mineira.
Em entrevista ao Dom Total, João Roque aborda o Sínodo para a Amazônia e o papel da Igreja Católica na promoção dos Direitos Humanos e na luta por uma sociedade mais fraterna e igualitária. “O sínodo poderá ser um valioso acontecimento para harmonizar e pacificar os diversos valores de todos os povos”, diz, acrescentando que será uma oportunidade de se conhecer melhor sobre os Povos da Amazônia, onde a Companhia de Jesus tem uma presença histórica. Ele descreve os principais temas do encontro, convocado pelo papa Francisco em 2017, destacando como um de seus objetivos “defender a Amazônia, seu bioma e seus povos ameaçados em seus territórios, injustiçados, expulsos de suas terras, torturados e assassinados nos conflitos agrários e socioambientais”.
Para o jesuíta, a Constituição Brasileira “está sendo solapada por sucessivas emendas que enganam o povo e favorecem a corrupção que galopeia em todos os quadrantes da ‘pátria amada, Brasil’”. No entanto, afirma que “não devemos desanimar” e aposta na educação como elemento central para a transformação das pessoas em direção a um humanismo mais fraterno.
Depois da Constituição de 1988, a estabilização da economia nos anos 1990, os avanços sociais e a grande redução da pobreza nos anos 2000, a utopia de um Brasil para todos parece ter entrado em crise. Hoje, o que pode alimentar a esperança e engajar o brasileiro na busca da justiça social?
Inúmeros setores da realidade nacional e internacional não somente parecem ter entrado em crise, como de fato entraram. Não resta dúvida de que em parte alcançaram os sonhos da utopia a que apontavam. Mas, a realidade global mudou muito e os ventos contrários sopraram mais forte, conseguindo soprar noutra direção. A tão propalada Constituição Cidadã, anunciada com tanta alegria e esperança por Ulisses Guimarães em 1988, está sendo solapada por sucessivas emendas que enganam o povo e favorecem a corrupção que galopeia em todos os quadrantes da “pátria amada, Brasil”. Por mais que o papa Francisco insista em não permitirmos que nos roubem a esperança, parece que as vozes e os interesses contrários são mais fortes e conseguem nos fazer regredir sobre os avanços já alcançados. É triste. Mas não devemos desanimar. No horizonte há sinais que apontam para a superação da miséria e da fome e de outras mazelas que oprimem tantos brasileiros que vivem em condições degradantes e desumanas. Certamente, a esperança pode alimentar-se na união dos bons cidadãos que se dedicam às causas que promovam a justiça, a fraternidade, a honestidade e a reconciliação. Que abracem a globalização no sentido da solidariedade, evitando a conotação da competição, da acumulação financeira e econômica. As estatísticas apontam e demonstram que a renda se concentra cada vez mais em poucas mãos, em detrimento da grande maioria da população que conta com baixíssima renda para apenas sobreviver com o mínimo indispensável. Toda humanidade carece de uma equitativa distribuição dos bens da terra, evitando o desperdício e esforçando-se para preservar a natureza em todos os elementos que a compõem.
Em 2005, por ocasião da instalação da Região da Amazônia, o senhor proferiu uma homilia na qual afirma que Cristo aponta para a Amazônia. Hoje, com a decisão do papa Francisco de promover o Sínodo para a Amazônia, este tema ressurge. Qual a importância da região para a Igreja?
Como jesuítas e religiosos missionários sabíamos há muito tempo que Cristo apontava para a Amazônia, já que tomamos consciência de que a Igreja, assim como os governos civis e a maioria do povo brasileiro se haviam fixado ao longo do litoral banhado pelo Oceano Atlântico. Até a década de 1960, havia muito poucas dioceses em toda aquela região. As circunscrições eclesiásticas eram denominadas prelazias e eram confiadas a congregações religiosas que geralmente se estabeleciam ao longo dos muitos rios que abastecem o gigantesco Rio Amazonas. Dedicavam-se primeiramente à evangelização dos diversos povos indígenas, procurando aculturar-se e se empenhavam em ensinar ofícios que lhes fossem úteis à sobrevivência. Pouco a pouco, os missionários, religiosos e leigos, começaram a atender às comunidades de imigrantes provenientes de outras regiões brasileiras e países limítrofes ou não.
Neste sentido, o Sínodo para a Amazônia desempenha um papel importante para a Igreja Católica e para a região…
Um texto sintético elaborado e publicado pelo Programa Magis Brasil de nossa província, traz dados suficientes e fidedignos sobre o Sínodo para a Amazônia: “O Sínodo para a Amazônia é uma resposta do papa Francisco à realidade da Pan-Amazônia, que hoje contempla nove países diferentes e soma mais de 30 milhões de habitantes. De acordo com Francisco, ‘o objetivo principal desta convocação é identificar novos caminhos para a evangelização daquela porção do Povo de Deus, especialmente dos indígenas, frequentemente esquecidos e sem perspectivas de um futuro sereno, também por causa da floresta amazônica, pulmão de capital importância para nosso planeta’”.
Quais são os eixos de discussão do sínodo?
Este sínodo especial já está em curso e terá seu ponto mais alto em outubro de 2019, durante os dias 6 a 27, na cidade do Vaticano, com o tema “Amazônia: novos caminhos para a Igreja e por uma ecologia integral”. São quatro pilares principais para seu desenvolvimento: Conhecer a riqueza do bioma, os saberes e a diversidade dos Povos da Amazônia, especialmente dos povos indígenas, suas lutas por uma ecologia integral, seus sonhos e esperanças; reconhecer as lutas e resistências dos povos da Amazônia que enfrentam mais de 500 anos de colonização e de projetos desenvolvimentistas pautados na exploração desmedida e na destruição da floresta e dos recursos naturais; conviver com a Amazônia, com o modo de ser de seus povos, com seus recursos de uso coletivo compartilhados num modo de vida não capitalista adotado e assimilado milenarmente; e defender a Amazônia, seu bioma e seus povos ameaçados em seus territórios, injustiçados, expulsos de suas terras, torturados e assassinados nos conflitos agrários e socioambientais.
Como o senhor avalia a atuação da Igreja, sobretudo dos jesuítas, na defesa dos povos da Amazônia? E qual a importância da realização do sínodo para a Igreja no Brasil?
Considero-a necessária e oportuna, porque ambas – Igreja e Companhia de Jesus – desempenham sua missão essencial de evangelização, de serviço da fé, de promoção da justiça e da reconciliação. Além disso, defendem os Direitos Humanos dos povos em questão e a preservação da Casa Comum da Humanidade, cuidando com desvelo da ecologia integral e da vida de todos os seres humanos, criados à imagem e semelhança de Deus. Um texto do documento de Puebla (1979) declara “que os pobres mais pobres entre os pobres da América Latina são os povos indígenas”, foi contestado por um famoso antropólogo, que afirmou que não cabia esta comparação, já que o sistema econômico e a cultura dos povos nativos diferem completamente dos povos não indígenas. Por isso, é importante conhecer bem estes sistemas para evitar conflitos e injustiças. O sínodo poderá ser um valioso acontecimento para harmonizar e pacificar os diversos valores de todos os povos nos quais se encontram não apenas as sementes, mas as raízes, os troncos, os ramos, as folhas, as flores e os frutos do Evangelho. Em tudo o Espírito Santo nos precede.
Qual o lugar que a Igreja deve ocupar na defesa dos Direitos Humanos? E quais são as frentes de atuação possíveis atualmente?
A Igreja Católica, juntamente com as demais Igrejas Cristãs e Religiões sintonizadas com a ONU que elaborou e divulgou a Declaração dos Direitos Humanos após a Segunda Guerra Mundial, pode ocupar cada vez mais o lugar que lhe cabe nesta missão. Por parte da Igreja Católica, estou convencido de que a fidelidade ao Evangelho na linha e no rumo que o papa Francisco apontou na Encíclica Evangelii gaudium, na Amoris laetitia, na Laudato si’, na Christus vivit e, especialmente, nas Encíclicas Sociais, desde o papa Leão XIII (1891) até os mais recentes papas. São múltiplas as frentes de atuação possíveis hoje em dia. Onde as Conferências Nacionais e Regionais dos Bispos estão alinhavadas e organizadas para operacionalizar estas diretrizes e orientações, há grande chance para a defesa e aplicação dos Direitos Humanos. Mas, é preciso avançar e não se acomodar em trincheiras ultrapassadas, marchando mais para trás do que para frente.
O papa tem insistido por uma Igreja em saída e que busca as fronteiras, inclusive existenciais, o que tem gerado resistência de muitos cardeais. Que falta para a Igreja fazer uma virada rumo essas periferias?
De fato, o papa Francisco tem insistido muitas vezes em uma Igreja em saída. Comparou-a com um Hospital de Campanha que pratica a sua medicina com tratamentos ligeiros e simples. Raras vezes recorre a procedimentos sofisticados e caros. A ida pressurosa às fronteiras, inclusive existenciais e tantas outras, representa a disposição de fazer-se presente, junto ao povo, como ele mesmo dá tantos exemplos. Para garantir a marcha rumo a estas periferias é preciso oferecer às novas gerações a formação adequada e proporcionar-lhes experiências pastorais e apostólicas que ponham em prática os ensinamentos do Concílio Vaticano II e dos sínodos que o sucederam.