Mudanças suspeitas ocorreram pelo fato de investigações terem chegado perto de parentes ou pessoas próximas a Bolsonaro.
Pacto velado entre governo, Judiciário e Legislativo garante que o combate à grande corrupção não avance. (Wilson Dias/Agência Brasil)
Por Ricardo Brito
Brasília – O presidente Jair Bolsonaro (PSL) enfraqueceu a bandeira de campanha de intransigência no combate à corrupção ao interferir diretamente na gestão de órgãos como a Receita Federal, a Polícia Federal e o Coaf, com efeitos ainda imprevisíveis para sua gestão e a disputa de 2022, avaliaram autoridades e especialistas ouvidos pela Reuters.
Sob o lema "interfiro mesmo, se é para ser um banana estou fora", Bolsonaro fez duras críticas públicas à gestão desses órgãos, o que tem motivado mudanças de pessoal e em suas estruturas. Mas há quem diga que essas alterações esvaziam o discurso anticorrupção do governo e lançam suspeitas sobre as intenções da mudança e o trabalho dos órgãos.
Especialistas cobram maior liberdade de atuação para os órgãos que foram alvos das investidas do presidente – que ainda anunciou que escolherá um novo procurador-geral da República com perfil alinhado ao governo.
Para Gil Castello Branco, secretário-executivo da ONG Contas Abertas, as intervenções surpreendem porque contrariam o discurso de campanha do presidente, umas das principais bandeiras das eleições. Para ele, as ingerências ocorreram pelo fato de terem chegado perto de parentes ou pessoas próximas a Bolsonaro.
Castello Branco critica o que considera ser um pacto velado entre governo, Judiciário e Legislativo para que o combate à grande corrupção não avance. "A sensação que eu tenho é que há um pacto que, em nome da governança, pode levar à impunidade", disse.
"Receio que, em nome da governança, do crescimento e do desenvolvimento, se prejudique o combate à corrupção. Pode gerar um pacto pela impunidade", disse ele, acrescentando que o país caminha a passos largos para isso. Ele criticou também a morosidade do Legislativo em aprovar, por exemplo, o pacote anticrime apresentado pelo ministro da Justiça, Sergio Moro.
Idas e vindas
Na Receita, o secretário especial, Marcos Cintra, trocou o número 2 após Bolsonaro ter dito que havia "problemas" no órgão e que sua família tinha sido alvo de "devassa" fiscal.
No caso do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), o órgão foi o que mais entrou na órbita das queixas do presidente e também de parlamentares.
No início do governo, por conta da medida provisória que alterava a estrutura do governo federal, o Coaf estava na alçada do Ministério da Justiça e Segurança Pública, comandado pelo ex-juiz da Lava Jato Sergio Moro. Mas na votação da MP, o Congresso devolveu o Coaf para o Ministério da Economia.
Em mais um movimento, na semana passada, o governo editou nova MP transferindo o órgão para o Banco Central e, com modificações, rebatizando-o de Unidade de Inteligência Financeira (UIF).Bolsonaro justificou a mudança para tirar o Coaf do "jogo político". O pano de fundo, entretanto, contou com o fato de o Coaf ter feito relatórios apontando movimentações financeiras atípicas na conta do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), filho do presidente, e o depósito de um cheque de R$ 24 mil na conta da primeira-dama, Michele Bolsonaro.
A pedido de Flávio, o STF suspendeu um inquérito contra ele e, numa extensão, todas as investigações no país que tenham por base o compartilhamento de informações da Receita, do BC e do Coaf com o Ministério Público sem autorização judicial."As últimas decisões do governo e do Supremo têm efeitos deletérios no sistema de controle", disse Fabiano Angélico, pesquisador da Fundação Getulio Vargas com experiência nacional e internacional em temas ligados à transparência governamental.
"Há um prejuízo enorme para o país não só de impunidade, mas na confiança das instituições democráticas e isso envolve a agenda macroeconômica atual", acrescentou.
No caso da PF, sob a alegação de problemas na produtividade, o presidente chegou a defender publicamente a troca de Ricardo Saad, superintendente da corporação no Rio de Janeiro – berço político de Bolsonaro –, e até sugeriu um nome para substituí-lo, atitude que abriu uma crise interna e pressionou o diretor-geral da PF, Maurício Valeixo, e Moro, a quem a polícia é subordinada.Bolsonaro recuou depois disso, mas a troca será efetivada – o escolhido é o delegado Carlos Henrique Oliveira de Souza, que estava em Pernambuco e não foi o nome sugerido pelo presidente.
O presidente da Associação dos Delegados da Polícia Federal, Edvandir Paiva, disse que foram "surpreendidos" com a possibilidade de mudança da PF no Rio, uma vez que houve até melhoria nos resultados de produtividade naquele Estado na atual gestão.
Ele disse que não é comum o presidente se envolver em nomeação de cargos do "quarto escalão", mas ao final a corporação mostrou "maturidade institucional" para se manifestar contra qualquer tentativa de mudança interna."O governo tem uma narrativa que está preocupado com locais de aparelhagem ideológica. Não sei se é para intervir nas investigações, fica ao sabor das interpretações. Para nós, é preciso ter um sistema viável", disse ele, que também colocou em dúvida o papel de Moro na defesa da autonomia da PF diante do silêncio do ministro após as declarações do presidente.
Elogios
Ainda assim, no Congresso, há quem elogie reservadamente a postura de Bolsonaro. Uma liderança que está na Câmara desde o governo Fernando Henrique e é do centrão – grupo de partidos que não estão alinhados nem com o governo nem com a oposição – reconheceu que o presidente mostrou independência e não se dobrou frente a críticas de ingerência no seu governo. E afirmou que nem governos anteriores agiram dessa forma em relação aos órgãos.
Para esse líder, a mudança do Coaf ficou carimbada como se fosse para ajudar o filho do presidente, embora não fosse esse o objetivo. "As jogadas políticas do presidente se aproveitam dessas situações", explicou essa fonte, que atualmente é alinhada com o Executivo.
Em entrevista recente, o ministro do STF Gilmar Mendes elogiou a iniciativa de Bolsonaro em promover trocas nos cargos e negou que tenha havido pressão da corte para que o presidente promovesse essas mudanças. Avaliou isso como um freio de arrumação e disse que a autonomia levou a essas "parcerias esdrúxulas" em que órgãos ganharam tamanha independência que "começaram a pensar em autogestão".
Riscos
O cientista político David Fleischer, professor emérito da Universidade de Brasília, avalia Bolsonaro como um presidente "muito reativo" e "impulsivo" e alertou para o fato de que a ex-presidente Dilma Rousseff, que agia dessa forma, atravessou dois anos de "recessão brava" e foi alvo de processo de impeachment.
Fleischer afirmou que o presidente está testando, com essas intervenções, o seu limite de governabilidade e do seu apoio pessoal. Embora avalie que seja "inconveniente" Bolsonaro se imiscuir em cargos do segundo e terceiro escalões, o cientista político disse que o presidente tem uma estratégia definida de governar para os 30% de pessoas que apoiam seu governo, a semelhança do que faz o presidente dos EUA, Donald Trump, candidato à reeleição."O presidente quer reforçar sua ligação com esses segmentos e acha que isso será suficiente para levá-lo ao segundo turno em 2022", disse o cientista político, ao ressalvar que ainda é preciso avaliar a repercussão dessas interferências na classe média e alta, sensíveis a esse tipo de tema, e o impacto da retomada econômica e do aumento de empregos na sucessão presidencial.
Reuters/dom total///