No país com salário mínimo inferior a R$ 1 mil, juízes vivem outra realidade e contam com regalias bancadas pelo cidadão.
Muitos juízes ganham mais que presidente da República, que recebe R$ 30.900 (Banco de imagens Freepik.)
Foi na semana de sexta-feira 13, neste mês de setembro, que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) decidiu que o melhor era não dar chance ao azar. Apesar de a situação das contas públicas do país não ir bem, o órgão que controla o Poder Judiciário decidiu que era preciso cuidar melhor da saúde de seus magistrados e servidores e aprovou um auxílio que pode chegar a 10% do salário – um juiz no Brasil ficará muito próximo de ganhar o teto, que é de R$ 39,3 mil mensais. É mais do que o salário do presidente da República, de R$ 30.900,00.
Antes de sair criando novas despesas, o CNJ fez uma consulta a tribunais estaduais, federais e associações de juízes. Ouviu deles que o novo gasto era justificado. Uma das justificativas veio da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), que havia feito pesquisa mostrando que mais de 90% dos magistrados se dizem mais estressados do que no passado.
O CNJ operou em um dos poucos vácuos deixados pela Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2019. Essa lei dá as bases para os gastos do governo e, por causa da crise fiscal, proibiu reajustes aos auxílios alimentação, moradia e assistência pré-escolar. O auxílio-saúde ficou de fora da vedação.
O dinheiro poderá ser usado para pagar médicos, hospitais, planos de saúde, dentista, psicólogo e até os remédios comprados na farmácia. Livre do teto remuneratório, o auxílio será mais um "penduricalho" a turbinar salários dos servidores e magistrados. Uma despesa criada pelo Judiciário para beneficiar o próprio Judiciário.
Pesquisa feita pelo partido Novo mostra que, mesmo após o fim do pagamento indiscriminado de auxílio-moradia, 65% dos magistrados no país estão recebendo acima do teto do funcionalismo em 2019. O porcentual já considera uma margem de R$ 1 mil, para excluir aqueles que passam do limite por auxílios menores, como o de alimentação. Na advocacia pública, que inclui advogados da União e procuradores federais, o porcentual é bem menor, de 15%.
Liminar
O auxílio-moradia para todos os juízes foi obra de uma liminar concedida pelo ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal (STF), em 2014. Seu fim só foi decretado após uma negociação dura que obrigou o governo Michel Temer a avalizar um reajuste de 16,38% para os magistrados, que gerou efeito cascata nos Estados, por elevar o teto de salários para todos os servidores.
O levantamento do Novo analisou mais de 200 mil contracheques, inclusive de juízes estaduais. O Poder Judiciário nos estados é blindado de qualquer crise e não recebe um centavo a menos que o previsto no Orçamento, mesmo quando as receitas caem. Por lá, o porcentual de quem extrapola o teto estadual (R$ 35,5 mil) chega a 77%.
A pesquisa exclui os meses de janeiro e julho deste ano para evitar um resultado inflado por quem "furou" o teto com o terço de férias.
O economista Daniel Couri, diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado, diz que o problema dos "penduricalhos" é que, embora seja preciso uma lei para criá-los, o valor é decidido de forma administrativa. Ou seja, os próprios poderes podem escolher se merecem ou não um aumento.
"A LDO seria o lugar em que se poderia limitar de alguma forma essa autonomia", diz Couri. Para ele, o impacto do novo auxílio-saúde aprovado pelo CNJ deve ser significativo e levará aos órgãos do Judiciário federal a ter de cortar gastos em outras áreas, já que a emenda do teto fixa um limite total para as despesas. Caberá a cada tribunal regulamentar o pagamento do benefício.
A reportagem questionou o CNJ sobre o impacto da medida e as razões que levaram à decisão, mas não obteve resposta.
No Congresso
Com a persistência do pagamento de salários ao funcionalismo acima do teto constitucional, parlamentares ensaiam uma tentativa de resgatar um projeto de lei que regulamenta o que é ou não um "penduricalho" e que daria ao governo mais instrumentos para barrar os supersalários. A proposta poderia gerar uma economia de ao menos R$ 1,16 bilhão ao ano, segundo cálculos iniciais.
Pela proposta, todo tipo de pagamento passa a estar sujeito ao teto, exceto verbas de caráter indenizatório. O texto estabelece limites máximos para auxílio-moradia, diárias de viagem e auxílio-creche e critérios rígidos para concessão de auxílio-moradia. Já o ressarcimento por gastos médicos e odontológicos seriam efetivados apenas nos termos do plano de saúde do servidor.
O projeto de lei voltou a fazer parte das conversas na Câmara dos Deputados por ser visto como uma bandeira de maior apelo junto à população do que a impopular reforma da Previdência, que dominou as discussões na Casa durante o primeiro semestre.
Na semana seguinte à que os deputados aprovaram a criminalização do abuso de autoridade, 13 líderes de partidos de direita e esquerda protocolaram um pedido de urgência para levar ao plenário a proposta que mira os supersalários. Naqueles dias, organizações de juízes, policiais e procuradores fizeram forte pressão para que o presidente Jair Bolsonaro vetasse a lei do abuso, o que encorajou os congressistas a tentar cortar os penduricalhos dessas categorias.
O partido Novo não assinou o pedido de urgência, mas fez uma pesquisa que analisou 217.873 folhas de pagamento de auditores, diplomatas, advogados da União, procuradores fazendários, juízes e desembargadores, de fevereiro a junho deste ano. Descobriu que os magistrados recebem em média R$ 46,2 mil mensais graças aos benefícios extra-teto.
O relator do projeto de lei, deputado Rubens Bueno (CDD-PR), admite que passou a ser procurado pelos colegas nos corredores da Câmara. "Está sendo construído um entendimento sobre a matéria. O projeto está redondo para ser votado", afirma Bueno.
Agência Estado/Redação dom total//