Eis um dos perigos mais latentes de pregadores e pregadoras cristãos: tornar-se pedra de tropeço para as pessoas
À luz da palavra de Deus, os cristãos e cristãs são chamados a atuarem como profetas (Pixabay)
Felipe Magalhães Francisco*
A Palavra de Deus é mais penetrante que espada de dois gumes, ensina-nos as Escrituras (Hb 4,12). O mesmo versículo bíblico diz que a palavra de Deus discerne sentimentos e pensamentos do coração. Tolos os que acreditam que a palavra de Deus se encerra na letra da Bíblia. Depois de séculos e séculos de leitura fundamentalista da Bíblia, voltamos a essa situação lastimável dentro do cristianismo: o fundamentalismo bíblico, que faz extinguir o Espírito. É justamente à luz da palavra de Deus, à qual deve iluminar a leitura que os cristãos e cristãs fazem da realidade, que podemos fazer o discernimento dos espíritos, a fim de perceber quando o texto bíblico está sendo usado em cruzadas antievangélicas.
A letra mata, mas o Espírito vivifica (2Cor 3,6): é ao serviço desse Espírito que os cristãos e cristãs devem se ater. A Bíblia é a palavra de Deus por estar prenhe de sentidos vivos para a vida de homens e mulheres de todos os tempos. Se a Bíblia é usada para fundamentar ações que provoquem morte e indignidade às pessoas, então ela não é palavra de Deus. Eis um dos perigos mais latentes de pregadores e pregadoras cristãos: tornar-se pedra de tropeço para as pessoas. Nenhum cristão está imune a esse risco. É por isso que devemos sempre buscar beber da fonte, abrindo-nos à graça do Espírito do Ressuscitado que torna viva e fecunda a memória de Jesus Cristo.
Há um jargão muito comum, repetido várias e várias vezes por alguns cristãos: “Deus ama o pecador, mas abomina o pecado”. Não é falso: o pecado nos desumaniza e, por isso, trata-se de uma negação daquilo que o próprio Criador imprimiu em nós; mais: Deus está sempre disposto a nos acolher de volta, em seu amor. Contudo, esse jargão não é usado para ressaltar a graça do amor de Deus, sempre generosa e abundante. Ao contrário, torna-se pretexto para o juízo de condenação das pessoas que não se adequam a certas compreensões valorizadas por esses cristãos específicos. Sobre isso, não se pode dizer outra coisa, a não ser que tal prática significa a letra matando e o Espírito sendo extinguido!
À luz da palavra de Deus, os cristãos e cristãs são chamados a atuarem como profetas. Profecia, aqui, não significa o juízo indiscriminado, pois este gera morte e está na contramão do Evangelho do Reino: quem se comporta assim, atua tal como Jonas que, na narrativa, mais se apresenta como um anti-profeta. A profecia é um apelo à conversão, na denúncia das injustiças e no anúncio de uma esperança. É nesse sentido que a palavra de Deus é tal como uma espada. Nas Escrituras, o simbolismo da espada remete à justiça: não para matar, mas para revelar a verdadeira vontade Deus, que não é outra coisa senão vida plena e abundante. Se os cristãos e cristãs empunham a Bíblia com outro espírito que não o do anúncio de uma Boa-Notícia, estão a serviço de Satanás, mas não do Deus de Jesus.
O mesmo deve ser dito para quem usa das Escrituras para se apropriar dos poderes do mundo, que provocam injustiça e opressão, e para provocar golpes de todos os tipos. A palavra de Deus não quer instaurar uma teocracia em nossas sociedades, mas ela aponta para aquilo mesmo que foi a pretensão de Jesus, o Filho anunciador do Pai: abrir uma brecha na consciência da humanidade de que um outro modo de viver é possível. Ao uso ilegítimo da Sagrada Escritura, para o serviço do anti-Reino nessas novas cruzadas imbecis e fundamentalistas, devemos dar nosso mais veemente repúdio, atuando a favor da vida e, segundo a verdadeira palavra de Deus, discernir os espíritos, do que é e do que não é verdadeiramente cristianismo.
*Felipe Magalhães Francisco é teólogo. Articula a Editoria de Religião deste portal. É autor do livro de poemas Imprevisto (Penalux, 2015). E-mail: felipe.mfrancisco.teologia@gmail.com
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