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O dinheiro é covarde

Bancos se fingem de mortos enquanto a sociedade tenta sobreviver ao tranco econômico da covid-19

 

A inevitável recessão global obriga os bancos a pensar diferente

 

Rosangela Petta* De Crocetta del Montello, Itália

 

Foi a partir do post de uma amiga nas redes sociais que a dúvida coçou aqui atrás da orelha: de que forma os bancos estão contribuindo para os brasileiros enfrentarem o tranco sanitário e econômico gerado pela covid-19? A resposta é curta, simples e vergonhosa: nenhuma. De início, a Febraban (entidade que congrega as instituições bancárias instaladas no país) soltou uma nota mixuruca sobre o procedimento óbvio em tempos de pandemia: restrição de atendimento nas agências, para “preservar a saúde de funcionários e clientes”. No dia 16 de março, achou que devia dar um passo a mais e anunciou que os correntistas podem negociar a interrupção do pagamento de empréstimos por até 60 dias – o que, logo se descobriu, trata-se de mero refinanciamento de dívida, podendo até aumentar os já exorbitantes juros praticados no Brasil.

A título de comparação sobre responsabilidade financeira nestes tempos excepcionais de pandemia: na semana passada, a Federação Bancária Europeia (EBF) recomendou a seus associados que suspendam o pagamento de bônus a executivos e dividendos aos acionistas sobre o resultado do ano passado. A estratégia visa garantir que os bancos preservem o capital principal, mantendo o giro da roda básica da economia da zona do euro por meio de empréstimos a empresas e famílias que sofrem o prejuízo do isolamento social. Lembremos que a taxa básica de juros do Banco Central Europeu é um redondo zero desde 2016, que lá o credito pessoal tem juros entre 7% e 18% e o financiamento de moradia, menos de 2% — ao ano.

Mas, por aqui, não há sinal de que as instituições bancárias perceberam que a inevitável recessão global, desta vez, obriga a pensar diferente. Seguem se fingindo de mortas, seja quanto a formar alternativas financeira para a sociedade da qual dependem, seja quanto à solidariedade em momento de crise extrema. Passado já um mês desde que o novo coronavírus começou a infectar o Brasil, a velha discussão sobre taxação de grandes fortunas finalmente se desenrolou e chegou ao Senado federal. Por estes dias, a Comissão de Assuntos Econômicos analisa projeto do deputado Plínio Valério (PSDB-AM) para obter recursos para a Saúde e o fortalecimento da economia. Pelo projeto, por dois anos o Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF) deve incidir sobre patrimônios líquidos superiores a R$ 22,8 milhões, com alíquotas que irão de 0,5% a 1%. Pelos cálculos, renderá algo entre 70 e 80 bilhões de reais.

Ressalte-se, porém, que essa taxação recai sobre pessoas físicas, os afortunados do topo da pirâmide da desigualdade social brasileira. Muito bom, muito bem. Aliás, é mesmo de pessoas físicas que vêm brotando ações pontuais de colaboração emergencial, desde jovens que fazem compras para os idosos em quarentena até artistas que doam leitos hospitalares. Entre as PJs, há cervejarias fabricando álcool gel, aplicativos de táxis transportando gratuitamente profissionais da saúde, restaurantes fornecendo refeições gratuitas aos mais vulneráveis, o comércio manejando férias coletivas e novas formas de vender, para não demitir pessoal. Até parece que doações em momento de emergência são coisa de artista, reservada a celebridades e excêntricos. Ou que a criatividade administrativa é uma tarefa mais apropriada a pequenas e médias empresas.

E aí a pergunta da minha amiga volta a incomodar: mas… e os bancos? Essa indiferença fica ainda mais chocante quando se verificam os números. Não é novidade que, depois da voraz máquina tributária, os bancos são os maiores esfoladores financeiros da população. Na chacoalhada de 2008, o mundo inteiro percebeu que eles tinham que ter algum tipo de vigilância do Estado (responsável primeiro e último pelo bem estar dos cidadãos), em países menos controladores do que o nosso. No entanto, no Brasil, há décadas banqueiros sabem que, venha a crise que vier, o setor nunca fica no prejuízo, graças ao socorro que os governos invariavelmente providenciam para “não quebrar o sistema”. Compreensível, claro, milhões de correntistas não poderiam se ver, de uma hora pra outra, sem o que depositaram lá.

O problema é que, entre o socorro oficial e o amparo efetivo aos cidadãos (que também são correntistas), a relação é flagrantemente desequilibrada. Para o grande capital, um país de terceiro mundo, como o Brasil (ok, ok: “emergente”), é sempre um bom negócio. Tomemos as cifras do lucro líquido dos cinco maiores bancos em 2019, ano de atividade econômica débil. Começando pelos estatais, o Banco do Brasil contabilizou R$ 17,848 bilhões (32,10% mais que em 2018) e a Caixa Econômica Federal, R$ 21,1 bilhões (com impressionantes 103% de crescimento em relação ao ano anterior). O Itaú Unibanco ficou no azul em R$ 26,583 bilhões (6,4% mais sobre 2018) e o Bradesco, com R$ 22,582 bilhões (subida de 18,32% em um ano).

Para o espanhol Santander foram R$ 14,181 bilhões (aumento de 16,6% sobre o lucro de 2018). Juntos, os top five lucraram R$ 102,294 bilhões. Mais uma vez: é lucro líquido, já livre de impostos. Nem que fosse pelo mais impiedoso marketing, poderiam fazer mais do que estender prazos de quem não pode pagar contas no curto prazo. Será que doeria muito no bolso — ou nas têmporas, nos músculos, nos ossos, no pulmão, na corrente sanguínea — dos acionistas tirar um naco dessa dinheirama para ajudar todo um país em momento mais do que assustador? Um leito básico de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) custa cerca de R$ 100 mil. Por esta base, 500 leitos de UTI custariam R$ 50 milhões. Portanto, 2.500 novos leitos de UTI custariam menos de 0,3% do faturamento líquido das cinco maiores instituições bancárias em funcionamento no país: R$ 250 milhões.

Pois é mais ou menos desse tanto que os hospitais precisam agora e já. Segundo o Ministério da Saúde, há no país 14,8 mil leitos de UTI para adultos e são necessários outros 2.960 para enfrentar a covid-19. Foi aberta licitação para comprar 2 mil. Se apenas os cinco maiores bancos instalados aqui (que só são a potência que são graças ao dinheiro de seus clientes) se dispusessem a bancar imediatamente esse equipamento, restaria ao poder público a despesa de manutenção, estimada em R$ 2 mil/dia por adulto internado. Não se trata de caridade, mas de sobrevivência em um violento turning point do mundo inteiro. “O dinheiro é covarde”, disse-me, certa vez, um dos meus mestres na profissão jornalística, Ricardo Augusto Setti. Porque o dinheiro se assusta fácil, foge ao primeiro zum-zum boateiro, sai correndo de países que enfrentam instabilidades mesmo que momentâneas. O caso é que, agora, não há mais para onde fugir: o planeta inteiro está assustado.

Por outro lado, é bom lembrar que o dinheiro, em si e não como metonímia, é objeto inanimado. Não toma decisões sozinho. Ele dorme nos cofres de gente de verdade, feita da mesma matéria dos que hoje buscam o sistemas público e privado de saúde e que necessita do mesmo ar dos sãos e dos que não sobreviverão sem um respirador artificial. Está na hora de o dinheiro admitir que tem cara, corpo e cabeça pra pensar muito além da conta de somar. Se ainda lhe passar uma luz fugaz na consciência, pode até lembrar que tem dedos articulados para abrir a mão.

 

 

*Rosangela Petta, paulistana, é jornalista, consultora em comunicação e escritora. Em mais de 40 anos de imprensa, trabalhou nas redações de O Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil, revista IstoÉ e TV Cultura de São Paulo, entre outras. Foi professora de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero.

 

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