O retrato da necropolítica nos Estados Unidos e no Brasil.
No Brasil, os negros são ainda mais afetados pela pandemia, na medida em que já são muitas as marcas de negação de direitos (AFP)
Pedro Henrique Moreira da Silva*
Achille Mbembe é um filósofo camaronês que teceu considerações acerca do termo ?necropolítica?, que diz respeito ao movimento do sistema para ?fazer viver e fazer morrer?. Essa sistemática leva em consideração a descartabilidade de alguns indivíduos ?" principalmente negros ?", que são vistos como indesejáveis sociais. Nesse sentido, não há interesse e preocupação do sistema e dos Estados em promover o bem-estar, segurança, saúde, integridade e dignidade desses corpos, na medida em que toda vulnerabilidade a eles imposta contribui para o extermínio, que é o objetivo final da necropolítica. É nesse sentido que a pandemia do novo coronavírus afeta a população negra, aprofundando vulnerabilidades e comorbidades que constituem a fragilização desses indivíduos na sociedade. Isso porque, as desigualdades internas são realçadas no contexto da Covid-19, de forma que a reação em face da doença tende a não contemplar a proteção de vidas que, pelo sistema, são passíveis da morte. É o que se nota, por exemplo, da forma como a pandemia tem afetado a comunidade afro-estadunidense. Em Michigan, negros representam 30% dos casos de Covid-19 e 40% das mortes pela doença, ao passo em que constituem tão somente 14% da população do estado. Em Chicago, a mesma realidade se repete: enquanto afrodescendentes são 29% da população, representam 70% das mortes pela doença.
Ainda para exemplificar de que forma a vida negra é negligenciada durante a pandemia, basta invocar os estudos de Blake Farmer, que comprovam que afro-estadunidenses são menos testados para a doença que pessoas brancas quando comparecem em centros de saúde apresentando sintomas da doença. Esse estudo foi referendado por Shannon M. Monnat e Kent Cheng, que demonstraram que os estados com maior presença de negros nos Estados Unidos da América são também os estados com menores índices de testados por 100 mil habitantes. Ainda nesse sentido, no estado de Nova York, as taxas de morte por Covid-19 entre brancos é de 10,2, enquanto entre negros é de 19,8 por 100 mil habitantes. Segundo a epidemiologista e ativista dos direitos civis Camara P. Jones, ?a maior infecção dos negros pela Covid-19 se justifica por serem os mais expostos e, quando infectados, morrem mais porque os corpos são marcados pelo peso da falta irremediável de investimento e negligência profunda da comunidade?.
No Brasil, os negros são ainda mais afetados pela pandemia, na medida em que já são muitas as marcas de negação de direitos. É o que se verifica na análise da situação da pandemia no Complexo do Alemão ?" espaço majoritariamente negro. Isso porque, apesar da estimativa de mais de mil casos de infectados pelo coronavírus, apenas 15 pessoas foram diagnosticadas naquela comunidade, segundo dados da Clínica da Família Zilda Arns. Ademais, as comorbidades entre negros ?" fator importante na resposta imunológica em face da Covid-19 ?" também é predominante em brasileiros afrodescendentes. Assim, o que se verifica é que os negros possuem riscos adicionais no contexto da pandemia, na mesma medida em que a checagem de infecção e o tratamento para a doença são negligenciados. A segregação da dignidade por meio do algoritmo racial é decisiva para a promoção da morte dos corpos ?não valorosos?. A realidade da pandemia do novo coronavírus acentua as mazelas que acompanham a dinâmica necropolítica, a partir de um ciclo infinito de indignidades sociais ?" fruto do racismo estrutural. É aprofundada a política de ?fazer morrer?, considerando-se o tempo oportuno que a virulência da Covid-19 proporciona e de sua maior fatalidade entre os corpos negros ?" que são lidos, dentro e fora das periferias do capitalismo, como corpos descartáveis.
Mestre em Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável e bacharel em Direito pela Dom Helder Escola de Direito. Advogado no Sette & Moreira Advocacia e Consultoria.
Dom Total///