Epidemiologista fala sobre carta à comunidade científica internacional sobre a maneira "vergonhosa" como o governo Bolsonaro conduz a pandemia.
O ministro da Saúde Eduardo Pazuello e o presidente Jair Bolsonaro: remédios sem comprovação e possível omissão (Carolina Antunes/PR) DW
Coordenador do Epicovid-19, primeiro estudo brasileiro a avaliar a magnitude da pandemia do coronavírus, o epidemiologista e educador físico Pedro Hallal, ex-reitor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), publicou na revista médica britânica The Lancet uma dura crítica à maneira como o governo brasileiro está conduzindo a crise sanitária. Intitulada "SOS Brasil: ciência sob ataque" , a carta, endereçada à comunidade científica, inclui números da pandemia do Brasil e relembra momentos em que o presidente da República, Jair Bolsonaro, agiu minimizando ou desacreditando a gravidade da situação. "A falta de ação [do governo federal, quanto ao coronavírus, motivou a carta]. A má condução da pandemia pelo governo brasileiro está passando de todos os limites e, agora, com essa questão da vacinação, a situação ficou insustentável. Achei que a comunidade científica internacional deveria saber do que está acontecendo", disse Hallal em entrevista.
Em trecho do documento, ele afirma que "a resposta trágica do Brasil à Covid-19 tem um preço". "A população brasileira representa 2,7% da população mundial. Se o Brasil também representasse 2,7% das mortes por Covid-19 (isto é, tivesse uma performance no enfrentamento da Covid-19 igual à média mundial), 56.311 pessoas teriam morrido. Contudo, até o dia 21 de janeiro de 2021, 212.893 pessoas haviam falecido devido à Covid-19 no país", prossegue. "Em outras palavras, 156.582 vidas foram perdidas por causa do mau desempenho brasileiro no enfrentamento da pandemia. Atacar pesquisadores definitivamente não vai ajudar a resolver o problema", critica. A The Lancet, fundada em 1823, é considerada uma das mais prestigiadas publicações médicas internacionais. A divulgação da carta aumentou a perseguição, sobretudo nas redes sociais, que já vinha sendo sofrida por Hallal desde que começou o trabalho à frente do Epicovid-19 e passou a se posicionar publicamente com orientações para a contenção da disseminação do vírus. No recorte gaúcho da pesquisa, o Epicovid entrevistou e testou, até o momento, 4,5 mil pessoas desde o início da pandemia. Na abordagem nacional, foram analisadas 33.250 pessoas de todos os estados da federação. No último dia 11, Hallal participou de um programa veiculado pela Rádio Guaíba, de Porto Alegre. Ele foi questionado como se infectou pelo coronavírus e recusou-se a responder. Com o epidemiologista já fora do ar, o deputado federal Bibo Nunes (PSL) e o jornalista Júlio Ribeiro passaram a criticá-lo. Um trecho da gravação foi compartilhado no perfil de Bolsonaro no Twitter, insuflando críticas ao acadêmico.
O que motivou o senhor a escrever essa carta publicada pela revista The Lancet?
Em primeiro lugar, a falta de ação [do governo federal, quanto ao coronavírus]. A má condução da pandemia pelo governo brasileiro está passando de todos os limites e, agora, com essa questão da vacinação, a situação ficou insustentável. Achei que a comunidade científica internacional deveria saber do que está acontecendo. E também houve os ataques diretamente a mim. Na verdade, o que me motivou a escrever a carta especificamente foi o Twitter do presidente da República ter publicado aquele trecho da entrevista, quando o deputado e o jornalista me atacaram.
O senhor se refere aos comentários veiculados, no último dia 11 de janeiro, pela Rádio Guaíba, quando o deputado federal Bibo Nunes (PSL) e o jornalista Júlio Ribeiro davam a entender que o senhor, por ter contraído a Covid-19, seria um exemplo de que o isolamento social não funciona – ou que o senhor não segue o que recomenda. Podemos dizer que esse episódio, com o posterior compartilhamento do trecho pelo Twitter de Bolsonaro, incitou os ânimos dos críticos?
Precipitou muitos dos ataques que foram feitos a mim. O vídeo original, de 12 minutos, é um ataque absurdo [do deputado], totalmente descontrolado, numa posição incompatível com o cargo que ocupa. Obviamente as devidas providências, se necessárias, serão tomadas. Tem uma série de absurdos que estamos tratando com o devido cuidado. Estou estudando, mas é realmente um ataque muito direto à minha pessoa. Tem injúria ali, tem uma série de coisas. Talvez sobre o caso eu vá tomar uma providência. Sobre a carta publicada pela revista The Lancet, como foi a reação de seus colegas? Como tem sido a repercussão no meio acadêmico? Muito positiva e impressionante. Recebi milhares [de mensagens], e digo milhares com a maior tranquilidade, acho que já dá para dizer dezenas de milhares. Tem um abaixo-assinado circulando de alguns cientistas brasileiros em defesa da minha situação. A reação foi positiva. O pessoal está indignado com o ataque que eu estou sofrendo e com a má condução da pandemia. O assunto principal não é o ataque a mim. O assunto principal não é se o deputado federal Alcibio [nome de Bibo Nunes] é um bom ou um mau deputado, se coloca outdoor com dinheiro público e todos os casos de corrupção atribuídos a ele.
Na verdade o que importa é como o governo brasileiro vem conduzindo a pandemia. E a carta escancara para o mundo a vergonha que tem sido o desempenho brasileiro no enfrentamento à pandemia. E críticas? A carta também está motivando esse tipo de resposta? Chegaram a mim umas cinco ou seis. Uma, de um médico do Rio de Janeiro, tentando usar argumentos científicos, falando de cloroquina, aquela coisa de sempre. Bem agressiva, usando argumento de autoridade pelo fato da formação dele, em medicina. Recebi ainda dois e-mails com conotação religiosa, dizendo que Deus vai proteger o presidente das forças do mal e que talvez eu seja uma das forças do mal. Em algum momento essas críticas passaram ou têm passado do aceitável para um debate? As eventuais ameaças que recebi durante a pandemia [pelo trabalho à frente do Epicovid-19], e não foram poucas, essas foram encaminhadas para investigação à Polícia Federal e tramitam em sigilo. São ameaças, sim, de apoiadores do presidente.
DW/dom total///