No texto-base da Campanha deste ano, os bispos fazem críticas à forma como o governo Bolsonaro enfrenta a pandemia de Covid-19 e a sua negação da ciência. A iniciativa também reforça o combate à cultura da violência contra mulheres, negros, indígenas e população LGBTQI+ e a existência de uma “necropolítica” no país que nega a humanidade do outro e incita o ódio e a divisão
17/02/2021 12h55 – atualizado às 14h24
Nesta quarta-feira (17), a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (Conic) abrem oficialmente, de forma virtual, a quinta edição da Campanha da Fraternidade Ecumênica (CFE). A cada cinco anos, a Campanha da Fraternidade é produzida de forma ecumênica, com a orientação de líderes de diversas religiões. A Campanha da Fraternidade Ecumênica de 2021 tem como tema “Fraternidade e Diálogo: compromisso de amor”. No texto-base que detalha a iniciativa, a CNBB faz críticas à atuação do governo federal que “não adotou medidas efetivas no combate à pandemia de Covid-19”, o que “dilacerou famílias e deixou espaços vazios na cultura nacional”. A doença já matou mais de 240 mil pessoas no país. A CNBB denuncia ainda no texto-base o negacionismo da ciência por parte do presidente Jair Bolsonaro e de seu governo. “Discursos negacionistas sobre a realidade e fatalidade da Covid-19 são recorrentes, assim como a negação da ciência e do papel de organismos multilaterais como a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização Mundial da Saúde (OMS)”, diz um trecho do documento. O texto também critica o comportamento de igrejas que não respeitaram o distanciamento social e mantiveram os templos abertos e promoveram aglomerações. “Se por um lado, parte das igrejas realizaram pressão política para permanecerem abertas. Por outro lado, outras igrejas assumiram como testemunho de amor o cancelamento de todas as atividades presenciais, como forma de cuidado”, cita o texto. O documento também faz um alerta para a cultura da violência contra as mulheres, a população negra, indígenas e pessoas LGBTQI+, que seria a adoção de uma necropolítica no país. “Na lógica da necropolítica, a humanidade do outro é negada. São estimuladas as políticas de inimizade. A violência praticada pelo Estado é legitimada e justificada. No caso brasileiro, os sinais de necropolítica são perceptíveis em setores de Segurança Pública, que é altamente violenta e repressiva contra pessoas negras e pobres. Da mesma forma, pode-se ver a necropolítica na não regulação dos territórios indígenas”, diz o documento. E em outro trecho, o texto-base da Campanha da Fraternidade Ecumênica 2021 também destaca que a população LGBTQI+ sofre as “consequências da política estruturada na violência e na criação de inimigos“. A campanha sofreu uma reação violenta por parte de setores católicos conservadores e de bolsonaristas que passaram a pregar um boicote das dioceses à iniciativa, o que levou à direção da CNBB a divulgar uma nota em que esclarece os pontos principais da iniciativa.
Leia abaixo a íntegra da nota da CNBB:
NOTA DA PRESIDÊNCIA DA CNBB
Irmãos e irmãs em Cristo Jesus, “Não apagueis o Espírito, não desprezais as profecias, mas examinai tudo e guardai o que for bom” (1 Ts 5,21) No exercício de nossa missão evangelizadora, deparamo-nos com inúmeros desafios, diante dos quais não podemos esmorecer, mas, ao contrário, buscar forças para responder com tranquilidade e esperança. Nosso país vive um tempo entristecedor, com tantas mortes causadas pela covid-19, um processo de vacinação que gostaríamos fosse mais rápido e uma população que se cansou de seguir as medidas de proteção sanitária. Nosso coração de pastores sofre diante de tantas sequelas que surgem a partir da pandemia, em especial o empobrecimento e a fome.
A Campanha da Fraternidade 2021 e suas características
Em meio a tudo isso e atendendo à solicitação de irmãos bispos, desejamos abordar a Campanha da Fraternidade deste ano.
Algumas afirmações têm ocasionado insegurança e mesmo perplexidade.
Como sabemos, a Campanha da Fraternidade é uma riqueza da Igreja no Brasil, nascida e amadurecida não sem dificuldades e mesmo sofrimentos. A cada Campanha, o aprendizado se fortalece e se mostra continuamente necessário. Assim acontece com cada tema escolhido e assim acontece quando as Campanhas, desde o ano 2000, são feitas em modo ecumênico. Para este ano, o tema escolhido foi o diálogo, com o tema, portanto, fraternidade e diálogo: compromisso de amor. Trata-se, como explicado nas formações feitas pelo nosso Setor de Campanhas, do recolhimento dos temas anteriores, em especial desde 2018, que tratou da superação da violência, até 2020, quando apresentou-se a proposta cristã do cuidado. Para 2021, conforme aprovação em nossa Assembleia Geral de 2018, a Campanha foi construída ecumenicamente e, conforme costume desde o ano 2000, sob a responsabilidade do CONIC.
Nas primeiras reuniões, discerniu-se pelo tema do diálogo, urgência num tempo de polarizações e fanatismos, cabendo então ao CONIC a construção do texto-base. Isso foi feito conforme está explicado na apresentação do mesmo, com detalhamento da equipe elaboradora, na pág. 9. Consequentemente, o texto seguiu a estrutura de pensamento e trabalho do CONIC. Foram realizadas várias reuniões, o texto passou por revisão da assessoria teológica do CONIC, uma assessoria com membros das diversas igrejas, chegando, então, ao que hoje temos. Não se trata, portanto, de um texto ao estilo do que ocorreria caso fosse preparado pela comissão da CNBB, pois são duas compreensões distintas, ainda que em torno do mesmo ideal de servir a Jesus Cristo. O texto-base desse ano, por conseguinte, deve ser assim compreendido, como o foi nas Campanhas da Fraternidade levadas a efeito de modo ecumênico. Algumas questões específicas Nos últimos dias, reações têm surgido quanto ao texto. Apresentam argumentos que esquecem da origem do texto, desejando, por exemplo, de uma linguagem predominantemente católica.
Trazem ainda preocupações com relação a aspectos específicos, a saber, as questões de gênero, conforme os números 67 e 68 do referido texto. A doutrina católica sobre as questões de gênero afirma que “gênero é a dimensão transcendente da sexualidade humana, compatível com todos os níveis da pessoa humana, entre os quais o corpo, a mente, o espírito, a alma. O gênero é, portanto, maleável sujeito a influências internas e externas à pessoa humana, mas deve obedecer a ordem natural já predisposta pelo corpo” (Pontifício Conselho para a Família, Lexicon – Termos ambíguos e discutidos sobre família, vida e questões éticas., pág. 673).
Uma ajuda destacável
Já pronto o texto-base, fomos presenteados com a Fratelli Tutti, que recomendamos vivamente seja também utilizada como subsídio para a Campanha da Fraternidade deste ano. Ela estabelece forte conexão entre o tema de 2020 e o de 2021, cuidado e diálogo, e muito ajudará na reflexão sobre o diálogo e a fraternidade.
Coleta da Solidariedade
Junto com essas preocupações de conteúdo, surgiu ainda a sugestão de que não se faça a oferta da solidariedade no Domingo de Ramos, uma vez que existiria o risco de aplicação dos recursos em causas que não estariam ligadas à doutrina católica. Lembramos que, em 2019, foi distribuída pelo Fundo Nacional de Solidariedade – FNS a quantia de R$3.814.139,81, fruto da generosidade de nossas comunidades, não se incluindo nessa quantia o que foi destinado aos fundos diocesanos. Em 2020, por causa da pandemia, não ocorreu arrecadação. Somente com a ajuda da instituição alemã Adveniat conseguimos atender a 15 projetos. Sobre isso, recordamos que o FNS segue rigorosa orientação, obedecendo não apenas a legislação civil vigente para o assunto, mas também preocupação quanto à identidade dos projetos atendidos. Desde o início da construção da Campanha da Fraternidade de 2021, temos informado ao CONIC a respeito da dificuldade e até mesmo da impossibilidade de mantermos a estrutura do Fundo de Solidariedade como ocorrido nas Campanhas ecumênicas anteriores. Sobre este ponto, tendo como base a última dessas Campanhas, a de 2016, esta Presidência já manifestou ao CONIC as dificuldades e, por espírito de comunhão e corresponsabilidade, vai conversar sobre o assunto na próxima reunião do CONSEP. A conclusão será informada em seguida.
Desse modo:
Em consequência, respeitando a autonomia de cada irmão bispo junto aos seus diocesanos e como não poucos irmãos nos têm solicitado indicações para informar ao povo sobre a CF 2021, consideramos importante que sejam destacados os seguintes aspectos: A Campanha da Fraternidade é um valor que não podemos descartar. Alguns temas, conforme seu modo de ser apresentado, tornam-se mais difíceis que outros. A Igreja tem sua doutrina estabelecida a respeito das questões de gênero e se mantém fiel a ela. Os recursos do Fundo Nacional de Solidariedade serão aplicados em situações que não agridam os princípios defendidos pela Igreja Católica. A causa ecumênica se mantém importante. “Uma comunidade cristã que crê em Cristo e deseja com o ardor do Evangelho a salvação da humanidade não pode de forma alguma fechar-se ao apelo do Espírito que orienta todos os cristãos para a unidade plena e visível … O ecumenismo não é apenas uma questão interna das comunidades cristãs, mas diz respeito ao amor que Deus, em Cristo Jesus, destina ao conjunto da humanidade; e criar obstáculos a este amor é uma ofensa a Ele e ao Seu desígnio de reunir todos em Cristo” (S. João Paulo II, Encíclica Ut Unum Sint, 99) Concluímos lembrando a importância da Campanha da Fraternidade na história da evangelização do Brasil.
É nossa marca.
Cabe-nos cuidar dela, melhorá-la sempre mais por meio do diálogo, assim como nos cabe cuidar da causa ecumênica, um ideal que se nos impõe. Se nem sempre é fácil cuidar de ambos e de muitos outros aspectos de nossa ação evangelizadora, nem por isso devemos desanimar e romper a comunhão, uma de nossas maiores marcas, um tesouro que o Senhor Jesus nos deixou e do qual não podemos abrir mão. Não desanimemos. Não desistamos. Unamo-nos.
Brasília-DF, 09 de fevereiro de 2021
Dom Walmor Oliveira de Azevedo Arcebispo de Belo Horizonte (MG) Presidente da CNBB
Dom Jaime Spengler Arcebispo de Porto Alegre (RS) Primeiro Vice-Presidente da CNBB
Dom Mário Antônio da Silva Bispo de Roraima (RR) Segundo Vice-Presidente da CNBB
Dom Joel Portella Amado Bispo auxiliar da arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro (RJ) Secretário-geral da CNBB