Movimento do mercado de separar o joio do trigo, penalizando companhias que abriram capital muito infladas e com fundamentos ruins. Em agosto, o fundador da gestora Squadra, Guilherme Aché, apontou em um evento que o forte tombo das ações de tecnologia na bolsa se devia ao estouro de uma bolha de fake techs, companhias que se venderam como tecnológicas, com preços inflados, mas que na prática não tinham DNA tecnológico. A questão é: será que o banho de sangue das fake techs já acabou ou está só começando? O Monitor Mercantil consultou 4 analistas de mercado para entender o que justifica este movimento e se de fato estamos em uma bolha. Segundo um levantamento da Comdinheiro, desde 2020, 14 empresas do setor de tecnologia abriram capital na bolsa brasileira. Destas, apenas 6 acumulam um retorno positivo desde a sua estreia. Mas, se considerarmos a lista de 73 companhias que abriram capital desde 2020, entre os 20 piores desempenhos apenas 6 empresas são do setor de tecnologia, o que leva o analista CNPI Ricardo Schweitzer a acreditar que o problema não seja uma bolha específica do setor tech e sim um movimento do mercado de separar o joio do trigo, penalizando companhias que abriram capital muito infladas e com fundamentos ruins.
“Poderíamos também falar de uma bolha ESG, ou uma bolha da construção civil. O problema não são as techs e sim os valuation esquisitos com que certas companhias abriram capital”, defende. Schweitzer não descarta que nesse grupo teve muitas companhias que se venderam como techs, mas na realidade se encaixavam muito bem em outros setores. Das 14 empresas classificadas como tech entre os IPOs recentes, o analista enxerga apenas cinco como verdadeiras empresas de tecnologia. Segundo ele, o investidor precisa ter um olhar crítico de como a empresa ganha dinheiro, afinal “vender produtos para o consumidor por meio de canais digitais não torna uma empresa tech”, aponta Schweitzer. Pode ter muito mais sangue na rua A visão de Carlos Herrera, analista da Condor Insider, é semelhante. Mais do que uma bolha das techs, ele acredita que houve o surgimento de uma bolha das novidades, que incluiu além de empresas de tecnologia, e-commerce, ESG, fazendo com que muitas companhias em estágio pré-operacional levantem uma grande quantidade de dinheiro no mercado de capitais. “Essas empresas não deveriam ter feito IPO e sim procurado recursos em um venture capital ou via private equity”, afirma. Ele exemplifica citando uma companhia, que acumulou queda forte desde sua estreia e que se vendeu como tecnológica, mas depois tentou migrar para a venda física.
Segundo Herrera, muitos papéis que apresentaram narrativas sem fundamentos e saíram extremamente caros no IPO ainda têm muito espaço para andar. “Se tem uma bolha, ela ainda não estourou, pode ter muito mais sangue na rua, com os papéis recuando 50% ou mais”, cita. Bolha pontocom versus bolha tech Em tempos de otimismo generalizado, liquidez nos mercados e juros baixos, é inevitável lembrar da bolha pontocom, quando mais de 500 empresas norte-americanas que prestavam serviços de internet quebraram. O incidente iniciou na década dos anos 90 e estourou em 2000. Para Herrera, as principais semelhanças do momento atual com a bolha pontocom era a sensação de novidade. Enquanto na época das pontocom o movimento ficou por alguns anos com mudanças tecnológicas, no Brasil, o movimento tech foi propiciado pela pandemia, com as pessoas acreditando que tudo se tornaria digital. “A onda tech chegou por aqui 20 anos depois”, afirma. Outra semelhança é o cenário macroeconômico favorável, com taxas de juros baixas e liquidez abundante, que levou muitas empresas a abrirem capital, embora muitas delas não tinham um grau de maturidade adequado. Eis que surge a primeira diferença: enquanto nos EUA o setor tech estava bem representado, no Brasil este ainda é sub-representado com poucas companhias que de fato tenham um DNA tecnológico. “Os IPOs techs foram uma mistura entre a fome e a vontade de comer”, reforça Herrera.
Cautela com múltiplos acima de 20x o P/L Felipe Fernandes, chefe de análise da Flip Investimentos, concorda com isso e cita que durante a bolha pontocom qualquer empresa ligada à internet enxergou no mercado de capitais uma forma de ganhar dinheiro fácil. “Muitas vezes eram projetos, sem planos de negócios sólidos, que conseguiam o dinheiro do investidor por estar em um cenário de menor aversão ao risco”, lembra ele. Outra semelhança foram os valuations inimagináveis, com companhias cujos valores estavam extremamente inflados, conflito que se repete até hoje. De acordo com João Abdouni, especialista de investimentos da Inversa, muitos IPOs recentes chegaram ao mercado com múltiplos de 50 até 100 vezes preço/lucro (P/L). “O investidor precisa olhar com cautela tudo o que seja maior a 20 vezes”, alerta. Esta questão de valuation inflado também foi muito comum nos anos 2000. Segundo Herrera, ninguém questionava a metodologia dessa precificação, e em 99% dos casos os argumentos utilizados para justificar as bolhas pontocom se repetem atualmente. “Parece um xerox de relatórios e prospectos”, defende ele.
Neste contexto, Schweitzer alerta o investidor para ter cuidado com as promessas de crescimento faraônico, companhias que decidem abrir capital prometendo um crescimento extraordinário e com um valuation nas alturas. “O risco de execução é elevado”, cita. Muitas vezes a ação não anda, porque já precificou na sua abertura este crescimento futuro. Embora a bolha pontocom tenha provocado uma grande marca nos mercados americanos, Abdouni destaca que se uma bolha estourasse no Brasil hoje o golpe seria mais leve. Isso porque as principais ações do índice Ibovespa ainda são as tradicionais – Petrobras, Vale, Itaú, Bradesco, B3, Ambev e até JBS. “O efeito não seria tão traumático quanto a pontocom, e nem todas as empresas techs devem sofrer em bloco”, destaca. Enquanto o joio é separado do trigo, será que a Squadra acertou em cheio?
Por Kate Monteiro, especial para o Monitor Mercantil