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Democracia, entre ameaças e desafios – As atuais democracias são realmente democracias?

A maior ameaça à democracia é pensar que não há ameaças

Os 200 anos de Independência do Brasil nos faz olhar para o passado e entender o que construímos e somos como país

*Élio Gasda

A democracia brasileira vem sofrendo graves ameaças. Em contexto de ano eleitoral, a participação cidadã, que foi fundamental no processo de redemocratização pós-ditadura civil-militar, torna-se urgente.

Um país só existe como nação se for democrático, e “não há democracia com fome, nem desenvolvimento com pobreza, nem justiça com desigualdade” (Papa Francisco). A efetivação desses direitos fundamentais está associada ao nível de democracia conquistados por uma nação.

Desde os tempos da República o Estado de direito e suas instituições são atacados por forças antidemocráticas. A irrupção do bolsonarismo e da extrema direita é a consolidação de um processo histórico. Os ataques ao estado de direito e as instituições se abateram em uma escala comparável a 1964. Os direitos humanos e a constituição são atacados por quem deveria defendê-los.

Neste período eleitoral, é fundamental identificar as principais ameaças ao sistema democrático. Dados do Tribunal Superior Eleitoral comprovam que a estrutura social e política do Brasil está sustentada no patrimonialismo, no racismo e no patriarcado. Dos 28.371 candidatos apenas 9.447 são mulheres, 3.949 se declaram pretos. Se autodeclararam empresários 3.623 candidatos, desses 3.404 são milionários. Alguns inclusive possuem patrimônio entre 100 e 158 milhões de reais. Postulantes a bancada da bala são 1.440 (policiais civis e militares) contra 1832 professores. Uma democracia sem povo mantém uma sociedade desigual.

Os 200 anos de Independência do Brasil nos faz olhar para o passado e entender o que construímos e somos como país. Um sistema de dominação política em que a riqueza, os bens sociais, cargos e direitos são distribuídos como patrimônios das elites que se sentem donas do país e usam o estado para aumentar seu próprio capital e consolidar privilégios.

A riqueza imobiliária e financeira da elite brasileira foi acumulada em séculos. A desigualdade é o resultado. A estratégia é a normatização da necropolítica. A política de morte, executada de forma estrutural é mantida por um grupo majoritariamente masculino, branco e rico.

Desigualdade de classe, de gênero e raça. O racismo está presente desde a colonização. Está infiltrado nas instituições, na cultura, na economia. O racismo estrutural sustenta as instituições políticas do Estado.

Patriarcalismo. A mulher como propriedade. Poder e bens materiais e imateriais atrelados ao sexo masculino. Mulheres devem ser “belas, recatadas e do lar”. Muitas não são discriminadas apenas pelo gênero, se pretas e pobres a situação é pior. Mesmo sendo a maioria do eleitorado, elas continuam ausentes nos governos e no Estado. Subrepresentadas na política. Submetidas a situações de inferiorização, humilhação e violência. O poder patriarcal hierarquizado está normatizado e presente em todos os espaços sociais: família, escola, igreja, economia, Estado.

Economia do capitalismo. O projeto dos estados liberais consiste em ajustar o país ao capitalismo extremo aprofundando a desigualdade. Portanto, mais distante da democracia. “Enquanto os benefícios de uns poucos crescem exponencialmente, a maioria está ficando mais distante do bem-estar de uma minoria feliz” (Evangelli gaudium, 56). O capitalismo negou cidadania aos trabalhadores desde o momento que transformou o trabalho humano em mercadoria. A igualdade cívica, o voto, não afeta a desigualdade social. A exploração continua intacta. Uma minoria detém o direito de viver impondo a fome a violência e desespero ao resto da população.

O neoliberalismo exige despolitizar a sociedade. Governos reprimem movimentos socais, instituições, sindicatos e pessoas com consciência crítica. O Estado age para desregular a solidariedade, a consciência de responsabilidade social a pressão pela justiça social. Segurança social, saúde, educação, são transformadas em fontes de acumulação de riqueza. Não haverá verdadeira democracia enquanto houver essa economia que mata.

Outras ameaças: a instrumentalização da imagem do deus cristão como estratégia política: “Deus, pátria e família”. Um fenômeno global operado por políticos nada interessados nos ensinamentos cristãos. No Brasil encontra no bolsonarismo seu representante legal. Aliança entre militares, neoliberais e pentecostais, conectam-se em uma mesma gramática. Puritanismo religioso e capitalismo se fundem.

Fake news. Redes sociais são acusadas de manipulação de eleições, incitação à violência, mentir. Posições políticas tornaram-se radicais. Notícias falsas deterioram a qualidade da democracia, produzem um cenário falso que interfere no processo de escolha dos eleitores, um risco à democracia.

Está em construção uma ciberdemocracia, uma democracia que se serve dos instrumentos digitais-virtuais. Apesar da exclusão digital de setores da sociedade, o ambiente digital pode ser espaço de amplas possibilidades para o exercício da cidadania e de pautas voltadas para a justiça social e para os pobres. Desintoxicadas de seus excessos, elas podem ajudar a restaurar a democracia.

A democracia não é o melhor dos governos. Mas é o único regime aceitável ou o melhor dos piores regimes de governo, dizia Winston Churchill. Mas não se pode relutar ou desanimar na procura de outro regime melhor. Cabe sempre abrir novos horizontes em busca de uma sociedade mais justa.

A maior ameaça à democracia é pensar que não há ameaças.

*Élio Gasda é doutor em Teologia, professor e pesquisador na Faje. Autor de: ‘Trabalho e capitalismo global: atualidade da Doutrina social da Igreja’ (Paulinas, 2001); ‘Cristianismo e economia’ (Paulinas, 2016).