Especialista alerta que desmonte da atenção primária leva população mais pobre a desenvolver formas graves da doença
Não é novidade para a ciência que as taxas de incidência de câncer, principalmente nas formas mais graves, são maiores entre populações de menor renda, marginalizadas e com pouco acesso a educação e atendimento.
Há décadas, estudos no mundo todo apontam a desigualdade como fator que pode ser determinante não só para o aparecimento da doença, mas também para o sucesso do tratamento e as chances de cura.
No Brasil de hoje, no entanto, uma realidade potencializa esse cenário ainda mais: o desmonte na atenção básica à saúde. A porta de entrada do SUS sofre forte desfinanciamento desde a determinação do Teto de Gastos, da gestão de Michel Temer (MDB). No governo de Jair Bolsonaro (PL), a situação piorou.
“Vale lembrar que se soma essa questão ao cenário natural do envelhecimento da população brasileira, do aumento dos fatores de risco e das doenças, como obesidade, vira uma solução muito explosiva”, alerta a coordenadora de projetos da Umane, Evelin Santos.
A Umane é uma associação filantrópica independente, que articula e fomenta iniciativas de apoio ao desenvolvimento do sistema, melhoria das condições de saúde e promoção da saúde. Pesquisas organizadas pela organização corroboram as percepções sobre o peso da desigualdade na incidência de câncer.
Um dos estudos revela que 48,3% dos brasileiros das capitais não fazem nenhuma atividade física. O hábito está na lista de comportamentos que podem diminuir a ocorrência da doença. O problema é maior entre pessoas com menor escolaridade: 64,5% das que tem até oito anos de estudo não praticam exercícios.
“Podemos dizer que estamos diante de um cenário potencialmente pior a cada período, com uma grande sobrecarga em todos os níveis. As estimativas de novos casos de câncer que o Instituto Nacional do Câncer (Inca) lança a cada três anos só aumentam e corroboram essa tragédia anunciada”, afirma Evelyn Santos.
Brasil de Fato: O que os dados levantados pela Umane revelam sobre a relação entre desigualdade e a incidência de câncer no Brasil?
Evelyn Santos – Eles indicam duas coisas muito importantes. A primeira é que nós estamos falhando sistematicamente em prevenir tumores e cânceres que são sabidamente preveníveis há muito tempo. Seja por meio de vacinação, realização de atividade física, consumo do álcool, cessação do tabagismo, consumo de alimentos protetores, como frutas, verduras, legumes, fibras, uso do protetor solar, que contribuem para prevenir um grande volume de cânceres que contribuem em grande parte para a mortalidade no Brasil.
Outra coisa super importante desse cenário é que também não estamos conseguindo identificar, rastrear e tratar na nossa população de forma igual. Quem tem menos escolaridade e renda enfrenta diversos desafios e provavelmente está chegando com tumores em estado mais avançado para o tratamento.
Isso causa o aumento desproporcional e injusto dessa mortalidade nesse grupo, o que é coerente com estudos nacionais e também internacionais. Em países de alta renda, por exemplo, 9 entre cada 10 mulheres sobrevivem ao câncer de mama, enquanto que 4 a 6 mulheres sobrevivem em países como a África do Sul e a Índia, por exemplo.
Qual é o peso que a atenção primária exerce nesse cenário?
Os serviços que podem ser realizados na atenção primária são fundamentais. Vou dar um exemplo. No caso do câncer do colo uterino, a medida de prevenção é a vacinação contra o HPV, que é um tabu. O Ministério da Saúde recomenda a vacinação de pelo menos 90% da população alvo, que são as jovens, meninas e meninos. É uma medida que pode contribuir para a erradicação desse tumor ainda nesse século no mundo. Mas a gente não vem conseguindo avançar.
Outras ações, como rastreamento, a própria suspeita diagnóstica precoce a partir das diretrizes vigentes, para que então seja feito o encaminhamento para os exames e especialistas, também podem contribuir para diminuir esse tempo entre o surgimento dos tumores, o diagnóstico e o início do tratamento.
A atenção primária acaba dependendo muito dos hospitais e centros especializados a partir de certo ponto, o que pode complicar a situação e apresentar gargalos.
Nós temos hoje um sistema reativo. Ele prejudica quem mais precisa e responsabiliza muito o usuário. São raríssimos os municípios onde a população elegível para exames de rastreamento é acionada proativamente no caso de não comparecimento ao serviço. O local para que essa mudança aconteça é a atenção primária.
Percebe-se então que uma movimentação do poder público poderia evitar que pessoas com menor renda chegassem com cânceres avançados ao sistema de saúde. É possível dizer que o cenário que o Brasil vive, composto pelo Teto de Gastos e pelo desmonte na atenção primária, piorou a resposta aos casos de câncer?
Sim. Vale lembrar também que se soma essa questão ao cenário natural do envelhecimento da população brasileira, do aumento dos fatores de risco e das doenças, como obesidade, vira uma solução muito explosiva.
Podemos dizer que estamos diante de um cenário potencialmente pior a cada período, com uma grande sobrecarga em todos os níveis. As estimativas de novos casos de câncer que o Instituto Nacional do Câncer (Inca) lança a cada três anos só aumentam e corroboram essa tragédia anunciada.
Ela afeta desproporcionalmente tanto os países de baixa e média renda quanto, dentro desses países, as pessoas com ainda menor renda e escolaridade, por exemplo. Mas temos esperança nas novas gestões e que o próprio público, consciente e cobrando atenção primária mais forte, possa mudar um pouco esse cenário.
O que é essencial para reverter esse cenário?
Eu sempre dou um exemplo, é como se estivéssemos morando em uma casa com encanamento repleto de vazamentos em todos os cômodos, só que estamos tão ocupados tirando a água e todo o mofo de dentro da casa que não conseguimos parar para consertar o encanamento. Outro detalhe é que não podemos desligar o registro.
O que precisamos é que a população tenha acesso às informações claras e corretas, às recomendações simples que caibam na rotina e, principalmente, no bolso do brasileiro. Porque o feito é melhor do que perfeito.
Para isso funcionar também precisamos minimizar a interferência, repleta de conflitos de interesses, das indústrias do tabaco, do álcool, dos alimentos não saudáveis. Para que a população consiga melhorar essa consciência das consequências do consumo e da real intenção das ações do marketing, do patrocínio de eventos. É apenas a venda de produtos que fazem mal à saúde na maior quantidade possível.
A partir disso, na unidade de saúde, que seja o lugar onde você chegue acolhido prontamente. Por alguém que te conhece, onde não faltam insumos, equipamentos e profissionais. Onde esses profissionais passem menos tempo preenchendo papelada e mais tempo entendendo a situação de vida e saúde dos pacientes e conversando de fato com eles.
Que o agente de saúde, que é uma figura importantíssima, tenha ferramentas necessárias para registrar as informações e organizar sua rotina de forma ágil, a partir das demandas. Ir atrás das gestantes que faltaram à consulta do pré-natal, ir atrás dos adultos que precisam refazer hemoglobina glicada para acompanhar o diabetes, das meninas e mulheres que precisam vacinar contra HPV ou fazer o papa nicolau e a mamografia.
Precisamos também do gestor de saúde parando de planejar a oferta da sua rede a partir da série histórica e da demanda e consiga olhar para a situação da saúde da população. Planejar a partir disso. Se ele vai ter x novos casos de câncer naquele ano naquele estado, conforme o Inca, ele tem que achar esses casos. Ele não tem que ficar esperando que esse sistema resolva essa mágica.
A tecnologia da informação precisa ser utilizada para integrar todo esse processo e permitir que os profissionais dos serviços passem mais tempo atendendo os pacientes do que nas demandas administrativas, papeladas e planilhas. É assim que chegaríamos a um cenário ideal.
*Fonte: Brasil de Fato