Márcio Katánh é o primeiro estudante indígena a se formar em Direito no campus Santana do Livramento da Unipampa
Márcio Katánh nasceu e cresceu na Terra Indígena Kaingang, no município de Cacique Doble, no norte do Rio Grande do Sul. Além de ser graduado em Pedagogia, ele é estudante de Direito e o primeiro aluno indígena a se formar no curso na Universidade Federal do Pampa (Unipampa) Campus Santana do Livramento. Para seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), apresentado no fim de janeiro, decidiu pesquisar, desde o início da faculdade, as práticas penais dentro da comunidade em que cresceu. Em 2019, recebeu o prêmio de melhor trabalho das Ciências Sociais Aplicadas no 11º Salão Internacional de Ensino, Pesquisa e Extensão (Siepe).
“A pesquisa iniciou em um debate na aula de criminologia do meu professor orientador Marcelo Mayora. Ele estava falando sobre as práticas punitivas usadas pelo Estado e eu comentei, em interação com os demais colegas, que existem as práticas penais adotadas pelas lideranças na aldeia indígena Kaingang, onde eu resido. As leis são criadas juntamente a todas as lideranças indígenas e à comunidade, mas as leis são criadas oralmente, diferente das leis criadas por não indígenas, onde se inicia a criação no legislativo, após é sancionada pelo executivo e para o judiciário para ter uma validade”, relata Márcio.
A partir do desejo de uma compreensão maior das diferenças entre as leis punitivistas e burocráticas do Estado e práticas focadas na ressocialização e penas alternativas, sem o encarceramento, das comunidades indígenas, foi instituído um grupo de estudo dentro da universidade. Segundo Márcio, a pesquisa se deu de forma participativa com uma visão antropológica.
“Observo um movimento de alguns brancos, a favor do encarceramento em massa, que pensam que o aprisionamento visa erradicar a violência, punir e livrar a população brasileira de bem dos criminosos. Todavia, os índices de violência demonstram nitidamente que não houve desenvolvimento, melhora, mesmo com o aumento imenso de encarcerados no país. Vejo a falta de articulação entre o judiciário, legislativo e o executivo, na execução de políticas de segurança e justiça, mas que não seja focado somente no encarceramento como medida punitiva, mas sim como medida de reinserção e recuperação do cidadão marginal”, diz.
Para Marcelo, orientador do trabalho, a pesquisa foi realizada a partir de um “diálogo intercultural e do acolhimento de saberes”. Márcio explica que o trabalho contribui para indicar caminhos e alternativas para a justiça penal estatal. “Penso que a pesquisa feita pode contribuir aos não indígenas nos estudos sobre a punição, no campo do direito penal e da criminologia, bem como da antropologia jurídica”.
A Constituição Federal de 1988 resguarda a autonomia dos povos indígenas. “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”, explica o artigo 231 do documento.
O trabalho de Márcio também aborda uma resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de 2019, que estabelece procedimento no tratamento de pessoas indígenas acusadas, rés, condenadas ou privadas de liberdade. O texto indica que a autoridade judicial deve garantir a presença de intérpretes, de preferência da própria comunidade indígena, em todas as etapas de processos em que pessoas indígenas figurem como partes. Além disso, a autoridade também deve levar em conta, ao receber a denúncia em desfavor de uma pessoa indígena, as circunstâncias pessoais, culturais, sociais econômicas, bem como os usos, os costumes e as tradições de sua comunidade.
Dados da Pró-Reitoria de Graduação da Unipampa apontam que, nos 15 anos da instituição, formaram-se 31 discentes indígenas nos diferentes cursos da Universidade. A instituição possui um processo seletivo específico para indígenas aldeados e moradores remanescentes de comunidades de quilombos.
*Fonte: Sul 21