Cotação do dia

USD/BRL
EUR/USD
USD/JPY
GBP/USD
GBP/BRL
Trigo
R$ 115,00
Soja
R$ 180,00
Milho
R$ 82,00

Tempo

Permanência prolongada traz desafios de organização, convivência e saúde para abrigos

Milhares de desabrigados de áreas alagadas de Porto Alegre já completaram duas semanas fora de suas casas

Abrigo PUCRS foi montado há duas semanas para receber moradores do Humaitá | Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Enquanto o nível do Guaíba e as inundações em Porto Alegre não baixam, milhares de famílias permanecem nos abrigos espalhados pela cidade. Em muitos casos, já completando duas semanas fora de casa. Um desses abrigos que já acolhe desalojados desde o início do mês foi montado no Parque Esportivo da PUCRS. O Sul21 conversou com a professora Andrea Bandeira, decana da escola de Ciências da Saúde e da Vida e uma das coordenadoras do abrigo, para entender quais são os desafios que a permanência prolongada, algo inédito na Capital, traz tanto para a organização destes espaços, como para as pessoas acolhidas.

O abrigo montado no Parque Esportivo completou duas semanas nesta quinta-feira (16). No caso da PUCRS, os abrigados eram moradores do bairro Humaitá. Andrea pontua que manter um abrigo por tanto tempo exige um processo complexo de organização de um espaço coletivo que, ainda que temporário, exige que muitas pessoas convivam em um mesmo espaço.

“Tem uma necessidade de organização das camas por núcleo familiar, por proximidade. Muitos eram vizinhos e mantinham já essa rotina de compartilhamento da vida diária. E também é uma questão de como as relações também se dão nesse espaço, porque tu tem uma diminuição da privacidade. A luz é apagada no mesmo horário, há uma rotina também de alimentação. Então, acho que esses são os desafios que vão se colocando”, diz.

A professora destaca que o momento inicial, quando a pessoa se transfere para um abrigo, é marcado pela angústia de sair de casa e pela incerteza de não saber quando poderá voltar. Com o passar do tempo, avalia, a incerteza vai se transformando em expectativa pelo retorno.

“A gente não tem uma estimativa de quanto tempo isso pode durar, mas a gente tem ouvido de muitas pessoas que estão aqui a expectativa de baixar logo a água para poder voltar para casa”, diz. “Acho que todos têm se sentindo muito acolhidos aqui, a gente tem tentado proporcionar esse ambiente de acolhida e tenta ter uma rotina diária em que eles possam se sentir acolhidos, mas a gente tem esses desafios relacionados à convivência diária. Às vezes, questões mesmo de discussões familiares e dificuldades de relação, que a gente tem em todos os lugares, mas acho que isso vem sendo bem manejado. Mas é uma rotina bastante atípica”, complementa.

Para tentar manter o espaço a organizado, a PUCRS estabeleceu regras de convivência e do funcionamento do abrigo, como prioridade para idosos, pessoas com dificuldades de mobilidade e crianças no horário de banho. Horários específicos para refeições e atividades físicas. Após uma máquina de lavar roupa ser disponibilizada, voluntários ficaram encarregados de organizar um sistema. “Tudo isso foi pensado para que a gente pudesse manter uma rotina mínima e que a gente pudesse acolher eles né da melhor forma nesses primeiros dias”, afirma a professora.

Para conseguir atender as 250 pessoas que estão morando no abrigo, o Centro de Pastoral e Solidariedade PUCRS organizou uma estrutura que é articulada por 12 lideranças da universidade e que conta com o trabalho voluntário de centenas de pessoas. Andrea explica que 2,6 mil pessoas se cadastraram para ajudar no abrigo, mas que, inicialmente, as tarefas foram sendo divididas entre professores, estudantes e técnicos administrativos de diversas áreas, além do apoio de equipes de vigilância e de higienização.

“Todos os dias de manhã a gente se reúne no comitê que a gente denominou de crise, onde as lideranças da PUCRS passam todas as questões, todos os alinhamentos necessários para o dia, para semana, para que a gente consiga manter essa organização”, diz.

Com o passar do tempo, contudo, o número de voluntários também vai diminuindo. “A gente teve um número grande de voluntários que se inscreveu, muitas pessoas procurando, mas esse número vai ficando mais escasso. As pessoas também estão em outros lugares, muitas pessoas retomaram sua rotina, algumas pessoas que nos primeiros dias estavam ajudando também foram afetadas de alguma forma ou moram em bairros onde a gente está com uma dificuldade de mobilidade urbana. Então, são impactos que a gente tem e a gente vai reorganizando”, explica a professora.

Andrea pondera que uma das principais questões que precisam ser trabalhadas à medida que o abrigamento vai se prolongando é o resgate da autonomia das pessoas. “Hoje, eles não cozinham, eles recebem a comida pronta. Talvez, em casa, muitos tinham essa rotina de cozinhar. O coordenador do curso de Serviço Social, Francisco Arseli Kern, vem fazendo reuniões com lideranças que a gente já identificou entre os abrigados e que têm nos ajudado em alguns processos de retomada dessa autonomia, como cuidado com a cama, com a roupa, a limpeza do espaço que eles estão usando, varrer o espaço, organizar as roupas que precisam ser lavadas. Então, a gente vem resgatando aos poucos algumas questões que são muito importantes para que, no momento em que eles possam retornar para casa, não tenham perdido essa questão mais rotineira do dia a dia e um resgate da autonomia no momento tão difícil e de tanta fragilidade”, afirma.

Outra necessidade que foi percebida ao longo do abrigamento é a de garantir atividades e espaços de lazer, especialmente para crianças, para amenizar a angústia dos desabrigados acolhidos. “Hoje, a gente mantém aqui, claro que dentro de uma estrutura do parque esportivo, atividade física para as crianças, seja na quadra, seja no playground, seja ter uma brinquedoteca. Eu acho que precisa ter espaços também onde esteja oportunizada essa questão de lazer. Eu sempre digo que, à medida que a gente trabalha com um conceito ampliado de saúde, ela não é só ausência de doença”, afirma.

Neste sentido, a equipe do Instituto de Cultura da PUCRS, coordenada pelo professor Ricardo Barberena, tem promovido ações culturais para proporcionar momentos de entretenimento para crianças e jovens abrigados no local. Diariamente, o projeto “Cineminha” exibe filmes de classificação livre, como Shrek, O Homem Aranha e O Rei Leão.

No último sábado (10), foi realizada uma roda de samba, comandada por Thiago Ribeiro e Amigos, mas que também contou com a participação de um dos abrigados. Além disso, enquanto o Internacional usava as dependências da PUCRS para treinos, os jogadores Enner Valencia e Rafael Borré estiveram no local para levar doações e aproveitaram para brincar momentaneamente com crianças abrigadas.

Desafios de saúde
Para além das questões do dia a dia, há ainda uma série de preocupações com a saúde dos abrigados, inclusive com questões de saúde mental que podem ser agravadas pelo longo período fora de casa. Decana da escola de Ciências da Saúde e da Vida, Andrea diz que, nos primeiros dias de abrigamento, a principal preocupação, do ponto de vista sanitário, era com o fato de que pacientes crônicos, hipertensos, diabéticos ou com doença renal chegaram ao espaço após estarem dias sem fazer uso de medicamentos, porque perderam os medicamentos ou porque simplesmente não conseguiam fazer o uso.

“A gente teve um paciente que estava sem fazer hemodiálise há dois dias e, quando chegou aqui, de imediato já foi encaminhado pelas nossas equipes. E acho que esses dois primeiros dias foram os mais intensos nesse sentido de descompensação dos crônicos. Algumas situações agudas, como dor lombar, questões pela posição ou pelo tempo que ficaram esperando serem resgatados. Algumas doenças respiratórias, especialmente nas crianças, também pela questão da exposição à água, ao frio”, diz.

Além dos professores que circulam pelo local, uma equipe de saúde vinculada à Secretaria Municipal de Saúde atua no local das 9h à meia-noite. Andrea avalia que, com o passar o tempo, a situação passou a ser controlada. Outro motivo de atenção inicial era quanto ao risco de leptospirose, mas nenhum abrigado apresentou a doença. Há também atendimento odontológico e sessões de fisioterapia ocorrendo.

Andrea pontua que a preocupação com a saúde mental dos abrigados passou a ganhar força com o prolongamento da estadia. A professora explica que está sendo feito um atendimento inicial no próprio abrigo, com o encaminhamento sendo dado para que ele prossiga na rede de saúde.

“A gente tem visto muitas situações relacionadas ao momento atual, que geram muita ansiedade ou que geram algum trauma pela vivência disso, mas também muitas situações que já eram prévias e que se intensificam nesse momento. A gente tem uma equipe do curso de Psicologia, com professores, estudantes e supervisores que estão aqui diariamente, e uma equipe da Psiquiatria, com doutorandos, residentes e professores que estão trabalhando de forma integrada e construindo o projeto terapêutico para esses desabrigados”, diz.

*Fonte: Sul 21