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Fome e emergência climática no RS: “É preciso repensar o modelo gaúcho de desenvolvimento”, diz pesquisadora

Mirian Dickel aponta aumento na produção de milho e soja, mas queda na oferta per capita de feijão, frutas e verduras

Com a enchente de maio quase 20 mil famílias rurais tiveram afetadas construções e instalações de suas propriedades, o que gerou imensas perdas na produção de alimentos – Foto: Divulgação MST/RS

Intrigados com a atribuição ao Rio Grande do Sul do velho rótulo de “Celeiro do Brasil” ao mesmo tempo em que o estado registra insegurança alimentar – 22,2% leve, 11,3% moderada e 14,1% grave – três pesquisadores da UFRGS resolveram investigar a origem do problema, agravado agora com a devastação causada pelas cheias.

Insegurança alimentar e a emergência climática do RS é o título do estudo assinado por Mirian Fabiane Dickel, doutoranda em Desenvolvimento Rural, Alvori Cristo dos Santos, pesquisador do Observatório de Segurança Alimentar (Obssan), e a professora Gabriela Coelho de Souza, da Faculdade de Economia da UFRGS. Brasil de Fato RS conversou com Mirian para tratar deste paradoxo.

Brasil de Fato RS – O estudo de vocês leva o título de “Insegurança alimentar e emergência climática do RS”. Onde se encontram esses dois elementos?

Mirian Dickel – Em um cenário de emergência climática, a destruição de áreas de produção de alimentos, sobretudo da agricultura familiar, em assentamentos, comunidades tradicionais e aldeias indígenas, a dificuldade de acesso a alimentos por causa das rodovias danificadas, a subida dos preços de alguns itens, podem levar ao avanço da fome no Rio Grande do Sul. A ocorrência de extremos, inundações e estiagens severas, restringe a capacidade produtiva, reduzindo a geração de renda das famílias no campo e encarecendo os alimentos na cidade.

Com a enchente de maio quase 20 mil famílias rurais tiveram afetadas construções e instalações de suas propriedades, o que gerou imensas perdas na produção de alimentos. É o que informa o relatório apresentado pela Emater/RS.

Conforme os dados divulgados pelo Relatório da Emater: Impactos das chuvas e cheias extremas, referente a maio de 2024, 19.190 famílias rurais, tiveram afetadas construções e instalações de suas propriedades, o que gerou imensas perdas na produção de alimentos. Considerando itens da cesta básica, podemos dimensionar o cenário que se apresenta: de feijão foram 18.244 toneladas perdidas, e 160.664 toneladas de arroz, considerando as frutas, foram 120.016 toneladas de perdas, verduras e legumes foram 171.473,10 toneladas e 9.625.918 litros de leite não coletados.

Quando consideramos os grãos utilizados para servir de nutrição animal, podemos avaliar as perdas a médio e longo prazo nas cadeias de produção de proteína animal, carnes, leite e ovos, pois 354.189 toneladas de milho grão, e 721.336 toneladas de silagem, que serve de nutrição para rebanho bovino na produção leiteira, foram perdidos. Além disso, 1.198.489 aves, 14.806 cabeças de gado de corte, 2.451 cabeças de bovinos leiteiros e 14.794 cabeças de suínos morreram, impactando significativamente a produção de carne tanto para o consumo interno, como também para exportação.

BdF RS – Um dado importante que a pesquisa aponta é aquilo que seria, a princípio, um paradoxo. Tido como como grande produtor agrícola, o Rio Grande do Sul produzia, segundo o IBGE, nos anos 1970, algo como 17 milhões de toneladas de alimentos ao ano, ao passo que hoje colhe mais do que o dobro. No entanto, caiu a oferta de alimentos per capita, com as lavouras produzindo sobretudo para a exportação e não para a mesa dos gaúchos. Como isso aconteceu?

Mirian – A Associação Brasileira das Indústrias de Alimentos (ABIA) aponta que os principais produtos exportados pelo estado em 2023 foram soja (R$ 4,1 bilhões), tabaco (US$ 2,4 bilhões), tortas e outros resíduos do óleo de soja (US$ 1,8 bilhão), carne de aves (US$ 1,4 bilhão) e pastas químicas de madeira (US$ 833 milhões). O agronegócio contribuiu com 67% das exportações, com faturamento de US$ 1,2 bilhão e 1,87 milhão de toneladas exportadas.

Nos anos 1970, segundo o IBGE, o Rio Grande do Sul produzia 17 milhões de toneladas de alimentos considerando-se seis produtos e três grupos de produtos monitorados anualmente e representando as maiores proporções da produção total (acima de 90%). Atualmente, esses mesmos produtos totalizam cerca de 37,9 milhões de toneladas anuais. Um crescimento de 115% para a produção total e aproximadamente 250% para o grupo dos grãos (arroz, milho e soja).

A oferta de alimentos nos anos 1970 – verduras, hortaliças, frutas, arroz, não se considerando milho e soja – era de 4,6 quilos por pessoa/dia. Após 45 anos, é de cerca de 3,28 quilos por pessoa/dia, uma redução de 29,5%. Esses dados revelam a simplificação das dietas, com redução do consumo de hortaliças, verduras e legumes e o aumento de alimentos ultraprocessados.

BdF RS – O levantamento também menciona o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Brasil, lançado pela Rede PENSSAN em 2022, onde se registrava que 33,1 milhões passavam fome no país, sendo que mais da metade da população sofria algum grau de insegurança alimentar. Pelo que se depreende, essa insegurança está vinculada à opção da agricultura brasileira pela produção de commodities como a soja. Seria necessário, para eliminar a fome, reequilibrar a agricultura entre exportação e maior oferta de alimentos no mercado interno?

Mirian – Ao observarmos a trajetória histórica da produção por grupos de alimentos, temos a oferta de milho e soja em crescimento. Mas os demais produtos estão em queda, principalmente feijão, batata, verduras e frutas. A trajetória da agricultura sugere um contexto atual e futuro de insegurança alimentar e perda da qualidade nutricional, potencialmente agravadas em um cenário de mudanças climáticas e perda da capacidade produtiva em todas as regiões do estado.

São necessárias políticas públicas de incentivo à produção da diversidade alimentar com mais feijão, arroz, frutas, legumes, hortaliças, lácteos e carnes. Neste cenário de catástrofe climática, o que vemos são muitas áreas de cultivo da agricultura familiar completamente destruídas, solos lixiviados, que precisam ser recuperados para voltarem a ser férteis.

BdF RS – Ao mesmo tempo, desde 1985, o Rio Grande do Sul perdeu 3,5 milhões de hectares de campos nativos, o que equivale a 22% de toda a cobertura vegetal original do estado. Qual o papel do avanço da lavoura empresarial nessa perda, em que regiões ela é mais evidente e quais regiões estão agora mais ameaçadas?

Mirian – Muitas mudanças ocorreram nos últimos 40 anos. A modernização da agricultura, alterações nos parâmetros de uso do solo, sobretudo no bioma Pampa, fruto do processo de mecanização que, por um lado, reduziu o uso da mão de obra, expulsando muitas famílias do campo e, por outro, aumentou a produtividade, fazendo uso de agrotóxicos, superexploração de áreas planas, beiras de rios, planícies de inundação, e aterrando banhados.

Conforme os dados do MapBiomas, a perda de vegetação nativa atingiu o território gaúcho como um todo, mas quase um terço dela se deu na bacia hidrográfica do Guaíba, uma das mais afetadas em maio pelas cheias.

BdF RS – De que modo vocês relacionam esse avanço do agronegócio com o assoreamento dos rios e arroios e o movimento muito rápido das suas águas durante as cheias?

Mirian – O modelo de agricultura propagado pelo agronegócio, baseado na monocultura, adubação química e uso de grandes quantidades de agrotóxicos, resulta em perda de qualidade do solo. O tipo de manejo, não respeitando a declividade das áreas íngremes, sem curvas de nível, solos expostos, sem manutenção de cobertura, redução das áreas de proteção permanente (APPs), desmatamento e redução das matas que protegem as margens, drenagem dos banhados que funcionam como esponjas naturais.

O que podemos observar nas imagens de satélite, é uma água barrenta se deslocando, grandes quantidades de solo foram levadas pela correnteza, lixiviando a camada fértil. Em muitos lugares sobraram apenas desertos de entulhos, solos estéreis e rios de lama fétida.

BdF RS – Graças ao alto investimento em publicidade, o agronegócio se apresenta à opinião pública como equivalente de modernidade tecnológica e elemento do progresso nacional, mas, de fato, está atrás – devido às suas escolhas – da crescente insegurança alimentar. É isso?

Mirian – A principal propaganda do agronegócio brasileiro é a sua capacidade e eficiência em alimentar o mundo. Contudo, isso é uma falácia, uma mera propaganda. O agronegócio é bom em alimentar gado e abater animais para produzir carne, que representa apenas 18% da caloria consumida no mundo. Conforme levantamento do IBGE, 70% dos alimentos que chegam à mesa dos brasileiros são produzidos por agricultores familiares. Os latifúndios, com a grande extensão de terra utilizada para plantar soja e milho, servem para exportação e cumprem outras funções econômicas e comerciais.

BdF RS – Quais seriam as políticas públicas mais adequadas para mudar esse jogo, apostando mais na produção de alimentos para o mercado externo?

Mirian – Nestes tempos caóticos, políticas públicas são necessárias para estimular a produção de alimentos diversificados vindos da agricultura familiar, monitorar a condição de soberania e segurança alimentar e nutricional (SSAN) em diferentes grupos populacionais, comunidades tradicionais, povos indígenas, áreas urbanas. Sem esquecer de desenvolver políticas públicas de agricultura regenerativa, com recuperação de solos, restauração florestal e conservação da biodiversidade, nas propriedades afetadas pelas enchentes.

Será fundamental para reestruturar a produção de alimentos. Também políticas de geração de renda nas áreas urbanas, articulando agricultores e consumidores, para a produção e consumo de alimentos saudáveis, conservando os biomas e restaurando áreas degradadas. E, sobretudo, repensar o modelo de desenvolvimento do Rio Grande do Sul.

*Fonte: Brasil de Fato