O presidente Lula sancionou, em dezembro do ano passado
Em 2024, pela primeira vez, o dia 20 de novembro será feriado em Porto Alegre. O presidente Lula sancionou, em dezembro do ano passado, a lei que inclui o Dia da Consciência Negra no calendário de feriados nacionais. Além de montar uma agenda com os eventos que marcarão a data na cidade (confira abaixo), a reportagem do Sul21 conversou com o professor José Rivair Macedo, do departamento de História da UFRGS, para entender a importância do feriado para o movimento negro.
Oficialmente, a data é desde 2011 o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, por uma lei sancionada pela ex-presidenta Dilma Rousseff (PT). Mas não foi criado, naquela época, um feriado nacional; a partir daí, cada estado ou cidade brasileira poderia incluir um feriado neste dia. Não foi o caso de Porto Alegre, embora a proposição da data tenha surgido na capital gaúcha.
“A proposição do 20 de novembro como dia para reflexão sobre a população negra partiu aqui de Porto Alegre em 1972, pelo grupo Palmares”, explica o professor Macedo. O grupo de ativismo negro sediado na Capital foi ativo de 1971 a 1978, ano em que a ideia da data passou a ser assumida por outros movimentos sociais do país.
Até então, o dia adotado pelo movimento negro era o 13 de maio, data da abolição da escravatura. “Era uma data ligada à concessão de liberdade pela Princesa Isabel. Já o 20 de novembro é uma data de resistência e de luta pela liberdade, associada à morte de Zumbi dos Palmares”, afirma o professor. Zumbi foi um importante líder quilombola assassinado em 20 de novembro de 1695, na Serra da Barriga, em Alagoas. A versão mais aceita da história conta que ele teve a cabeça cortada e exposta em praça pública no Recife.
Mais de cinco décadas após a criação da data em Porto Alegre é que o município terá feriado, por força da lei federal de 2023. Em âmbito municipal, o feriado já havia sido aprovado na Câmara em 2015, sancionado pelo então prefeito José Fortunatti. Entretanto, o Sindicato dos Lojistas do Comércio (Sindilojas) ingressou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade contra a iniciativa, alegando que a definição de feriados é competência exclusiva da União. O mesmo aconteceu em 2003, quando a Federação das Indústrias do RS (Federasul) ingressou com ação similar.
“Embora a data tenha sido criada em Porto Alegre, não partiu da sociedade porto-alegrense. Partiu de intelectuais e militantes negros que viviam na cidade. Talvez, justamente por causa do racismo tão forte no Rio Grande do Sul, é que surgiram movimentos sociais negros muito fortes e aguerridos desde os anos 30 no estado”, pondera Macedo.
O professor salienta que o mais antigo clube social negro do Brasil, a Sociedade Floresta Aurora, foi criado em Porto Alegre no ano de 1872. A União dos Homens de Cor foi fundada na cidade em 1946. “Há uma história de organização social negra muito antiga no Rio Grande do Sul, por causa das relações sociais aqui existentes, que são muito mais escancaradas do que aquelas que acontecem em outras partes do país”, afirma.
Origem da consciência negra
Antes de ser criado um feriado, surgiu a ideia de “consciência negra”. O movimento da Negritude, composto por intelectuais africanos e diaspóricos na década de 1930, foi responsável pelas primeiras manifestações do conceito. “Esse movimento incentivou o anticolonialismo das independências africanas, por exemplo”, ressalta o professor da UFRGS. “Mas a ideia de negritude se renova no final dos anos 1960 nos Estados Unidos, com o movimento Black Power, e sobretudo na África do Sul, no contexto do apartheid”.
O intelectual sul-africano Steve Biko é considerado um dos principais responsáveis por dar forma ao conceito de consciência negra, na década de 1970. A ideia assenta na percepção de que a raça negra passa por um processo de dominação branca, de acordo com Macedo. “A consciência negra parte de um pensamento político que busca a mobilização negra para a ação. Supõe uma circulação de valores e ideias de pessoas negras do mundo todo”, resume o professor.
A ideia de consciência negra chegou ao Brasil depois disso. “Até então, a visão racial no país era marcada pela ideologia da democracia racial, de uma suposta integração”, diz Macedo. Atualmente, a democracia racial é considerada um mito, já que pressupõe que exista igualdade entre as pessoas de todas as etnias. “Justamente no final dos anos 1970 e início dos anos 1980 há um grande movimento nacional pela substituição do 13 de maio pelo 20 de novembro”.
No Rio Grande do Sul, através do grupo Palmares, houve uma mobilização para que a nova data fosse reconhecida. “Os feriados, as datas cívicas, costumam na sua maior parte vir de uma certa identidade nacional através do Estado. Ou então vêm da tradição religiosa”, aponta Macedo. “O 20 de novembro é uma situação diferente, porque é resultado de uma mobilização muito longa dos movimentos sociais, vinda de uma fração da sociedade que sentia a necessidade de ver sua presença reconhecida em dimensão nacional”.
Data para reflexão
O objetivo dos movimentos sociais é que o 20 de novembro não seja associado a uma celebração, mas sim a um momento de reflexão e denúncia. “O que dá origem à luta é o racismo existente no Brasil, e que continua a existir. Embora hoje existam políticas antirracistas, elas não resolveram e estão longe de resolver o problema”, destaca o docente da UFRGS. “Você não celebra a discriminação, não celebra a desigualdade, o esquecimento”.
Macedo lembra que, no Rio Grande do Sul, uma das lutas do movimento negro é pela mudança da letra do hino do estado. “A frase ‘povo que não tem virtude acaba por ser escravo’ é abertamente racista, mas o movimento não consegue alterá-la. Já nos anos 1970, o intelectual Oliveira Silveira [integrante do grupo Palmares] tentou propor alteração na letra, sem nunca ter conseguido”.
A Assembleia Legislativa aprovou, em 2023, um projeto do deputado Rodrigo Lorenzoni (PL) que “institui proteção e imutabilidade” dos símbolos do Rio Grande do Sul. Para Macedo, isso mostra que, embora a ideia da consciência negra tenha circulado no estado entre movimentos sociais e na comunidade negra, não foi assim na sociedade como um todo.
“Nesse momento em que o feriado passa a ser registrado na agenda nacional, que essa dimensão de reflexão possa contribuir para uma mudança efetiva da sociedade sul-rio-grandense”, coloca o professor. “A data do 20 de novembro não deve ficar limitada apenas a esse dia, mas tem que ser pensada em termos do que significa para a cidadania ativa das populações negras”.
Agenda: dia 20 em Porto Alegre
O feriado na Capital contará com o 3º Festival Porongos, das 10h às 19h30, no Centro de Educação Ambiental (CEA) – Bom Jesus (Avenida Joaquim Porto Vila Nova, Vila Pinto, 143). Um dos destaques da programação é a presença de Ravi Lobo, resultado do intercâmbio cultural entre Porto Alegre e Salvador. O rapper e compositor baiano é conhecido por suas letras que abordam a vida nas periferias, questões sociais e a luta por justiça.
Outra presença confirmada no festival é da cantora e compositora Pâmela Amaro, considerada uma das revelações do samba na atualidade. A artista estará acompanhada da banda Herdeiras do Samba em uma autêntica roda de samba. A entrada é franca, sujeita à lotação de 600 pessoas no espaço.
Às 10h, será entregue a estátua de Zumbi dos Palmares, instalada no largo que leva o nome do líder do Quilombo dos Palmares, no bairro Cidade Baixa. Produzida pelo artista Mario Cladera, uruguaio radicado em Porto Alegre desde 1978 e referência em escultura no Rio Grande do Sul, a estátua mede 2,40 metros de altura, somando a lança, e foi feita em bronze. Cladera é autor de 25 obras públicas entre bustos, hermas e figuras de corpo inteiro.
No Teatro Bruno Kiefer, 6º andar da Casa de Cultura Mario Quintana, será encenado o espetáculo “Negreiros – Histórias que a história não conta”, das 20h às 20h45. Com atuação de Juliano Felix, o espetáculo é um mergulho na escravização contemporânea que envolve o tráfico de pessoas, fluxos migratórios e a ampliação do debate racial no Brasil. Entrada gratuita.
Programação da Prefeitura Municipal: juntamente com o programa Centro+ e o Instituto Oliveira Silveira (IOS), uma agenda cultural irá movimentar o feriado de 20 de novembro:
8h – Cavalgada da Consciência Negra/Piquete Pêlo Escuro – da Orla para o Centro Histórico;
9h30 – Abertura da Exposição Grupo Palmares e as Mulheres, Pinacoteca Aldo Locatelli do Paço Municipal;
10h30 – Jogo dos Canelas Pretas com a benção dos Orixás, no Parque Marinha do Brasil;
12h – Churrasco da Consciência Negra, no Parque Harmonia;
15h – Bloco do Oliveira Silveira, da Orla para a Casa do Gaúcho;
16h – Show “Xandelle é 20”, na área central do Parque Harmonia;
17h – Roda de Capoeira da Consciência Negra, no Largo Zumbi dos Palmares
18h – Gangster – Oficina Batalhas de Rima, no Largo Zumbi dos Palmares
19h – Roda de Samba da Troop e Convidados, no Largo Zumbi dos Palmares
21h – Escola de Samba – Bambas da Orgia, no Largo Zumbi dos Palmares
Fonte: Sul 21