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ESPECIAL: Primeiro levante contra a ditadura, Guerrilha de Três Passos completa 60 anos e ainda é pouco reconhecida

Episódio foi o primeiro movimento organizado a confrontar o regime de exceção, instaurado em 1964

Foto: Acervo de Valdetar Dornelles / Documentos Revelados

Reportagem: Vinicius Bindé Arbo de Araujo / Especial Tertúlia Web

Na madrugada de 26 de março, exatamente seis décadas atrás, o primeiro movimento organizado e armado contra a ditadura militar instalada um ano antes no Brasil, eclodia na fronteira noroeste do Rio Grande do Sul, mais precisamente na cidade de Três Passos. Mesmo 60 anos depois, trata-se de um episódio ainda pouco estudado, debatido e conhecido, tanto em nível regional, como estadual e nacionalmente. “Foi o primeiro gesto de resistência armada frente à ditadura. Uma resistência quixotesca”, comenta Jair Krischke, presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos – MJDH.

O intento que lembramos nesta data, denominado de “Guerrilha de Três Passos” ou “Movimento 26 de Março – MR-26”, foi liderado pelo coronel do Exército, Jefferson Cardim de Alencar Osório, acompanhado de outros dois militares: os sargentos da Brigada Militar, Alberi Vieira dos Santos, e do Exército, Firmo Chaves, contando ainda com a participação de 20 pequenos agricultores, pertencentes ao Grupo dos Onze, que residiam no interior de Campo Novo, município vizinho a Três Passos, em área muito próxima da fronteira com a Argentina.

Jefferson estava atuando em Montevidéu, no Uruguai, como adido militar, indicado ainda no período da presidência de João Goulart. A capital do país platino era um verdadeiro centro de lideranças que recorreram ao exílio para fugirem de perseguições e prisões arbitrárias em solo brasileiro, após o golpe de 1964. Uma das principais lideranças neste rol, era o ex-governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola. Ele nutria viva a vontade de estabelecer uma resistência armada ao governo ditatorial, e buscava as condições necessárias para organizar este movimento.

Ainda hoje pairam dúvidas se, de fato, Brizola teria dado a sinalização positiva para que a mobilização eclodisse. O sargento Alberi era a fonte mais próxima ao ex-governador e quem repassava informações ao coronel Jefferson. Pesquisadores refutam a tese de que Brizola anuiu para que o levante de 26 de março acontecesse.

O plano inicial do grupo, composto por 23 homens, era tomar o 7º Grupo de Canhões de Ijuí (atualmente 27º Grupo de Artilharia de Campanha). Conseguindo este intento, a fagulha se espalharia por outros quartéis no interior do Rio Grande do Sul, como Santo Ângelo, Cruz Alta, Santa Maria e Pelotas. Em Ijuí, dois sargentos opositores à ditadura dariam o suporte à invasão e para a obtenção de armas.

Havendo essa rede de resistência, o objetivo do grupo era incentivar uma verdadeira insurreição armada e com apoio da população, contra o regime militar: uma quartelada. A região de Três Passos foi escolhida, devido à força que existia a partir da organização dos Grupos dos Onze, células de militância de base que haviam sido estimuladas por Brizola para manter viva a chama do trabalhismo, especialmente a partir da campanha da Legalidade, em 1961, liderada pelo próprio governador gaúcho e que impediu um golpe militar que inviabilizaria a posse do então vice-presidente, João Goulart, após a renúncia do presidente Jânio Quadros.

Estas informações constam em documento escrito pelo coronel Jefferson, durante seu período de exílio, entre 1968 e 1969. O material foi divulgado em 2015, em reportagem especial do site UOL, inclusive premiada. As memórias foram transcritas a partir de sua passagem por México e Argélia.

O então professor rural de Campo Novo, Valdetar Dornelles, foi procurado por Jefferson e Alberi e ficou encarregado de mobilizar combatentes locais, entre os quais alguns de seus familiares, além de fazer um levantamento geográfico da região para que a ação pudesse acontecer.

“As pessoas que aceitaram o desafio de integrar o grupo, apesar de humildes, possuíam conhecimento político. Participavam do Grupo dos Onze, movimento alimentado por Leonel Brizola. Não foi um episódio que pode ser minimizado”, ressalta o professor de História e pesquisador do tema, Luis Gustavo Graffitti.

O reforço na mobilização de militares em outras regiões falhou fragorosamente, muito em razão da sinalização nula que deveria vir de Montevidéu e das fontes em contato com Brizola.

Ainda assim, com poucos homens arregimentados, com pequena ou nenhuma experiência militar, escassa munição e dificuldades de logística, a primeira ação foi realizada com êxito: a tomada de Três Passos. Nos primeiros instantes da madrugada de 26 de março, o grupo invadiu e tomou o quartel/destacamento da Brigada Militar, a rádio Difusora e o presídio. Armas e fardas foram levadas. Também cortaram a comunicação telefônica e telegráfica da cidade. O grupo tentou ainda a retirada de dinheiro da agência do Banco do Brasil local, mas a ideia acabou frustrada.

O casal de proprietários da rádio local, Benno Adelar e Zilá Breitenbach, foram acordados em meio à madrugada e atenderam as exigências do grupo, colocando no ar a emissora, quando foi realizada a leitura de um manifesto à população, apelando para que se mobilizassem em oposição ao regime militar.

Com o passar das horas e não havendo ressonância ao levante em outras cidades, optou-se por um plano alternativo. Rumar em direção ao Paraná, onde, no dia seguinte, seria inaugurada a Ponte da Amizade, travessia unindo Brasil e Paraguai, com a presença do então presidente, Castello Branco.

A guerrilha ainda passou pelo município de Tenente Portela, com a tomada do destacamento da Brigada Militar, cruzando pouco depois o rio Uruguai, utilizando uma balsa, na divisa com Santa Catarina.

Amanheceram no município de Iporã, já no território catarinense e a poucos quilômetros da Argentina. Nesse momento, o regime militar já se organizava para conter o grupo de guerrilha. O levante era notícia nos meios de comunicação de grandes centros, como no caso da capa do jornal Correio do Povo, edição de 28 de março de 1965.

Foto: Acervo de Valdetar Dornelles / Documentos Revelados

Nas proximidades do município de Capanema, já no Paraná, o grupo que enfrentava de forma pioneira o regime imposto em 1964 pelos militares, foi localizado e monitorado por uma aeronave da Força Aérea Brasileira, que dava suporte à visita presidencial no Estado.

No território do município de Capitão Leônidas Marques, no dia seguinte ao início efetivo da empreitada, os guerrilheiros chegaram a trocar tiros com as forças militares. Porém, enfraquecidos, começaram a ser presos, sendo capturados entre os dias 27 e 28 de março. A única vítima do combate, foi o sargento do Exército, Carlos Argemiro de Camargo.

O coronel Jefferson e os demais combatentes, após serem capturados, foram torturados e humilhados perante a tropa formada por soldados e oficiais, durante o trajeto e no Batalhão de Fronteira, em Foz do Iguaçu, onde ficaram detidos, até serem encaminhados para cumprirem pena na cidade de Curitiba, também no Paraná.

Apesar dos erros e desacertos do movimento, Jair Krischke reforça o entendimento de que a Guerrilha de Três Passos é um fato de grande relevância para a história brasileira: “Como aconteceu aqui no Sul do mundo, o Brasil desconhece. Se acontecesse no Rio ou em São Paulo, seria cantado em prosa e verso”. Para ele, embora o nível pequeno de organização demonstrado, tratou-se de uma mensagem forte à ditadura: “haverá resistência”.

“Independentemente de ter dado certo ou não, o movimento iniciado em Três Passos fez manter acesa a chama de outros grupos que se opunham à ditadura e se organizaram a partir de então, especialmente no final dos anos 1960”, destaca o professor Graffitti.

Krischke também observa que esta história precisa estar presente na memória local, estadual e nacional. “A grande vacina contra o autoritarismo, é a memória. Ela que nos protege. Quem não conhece o seu passado, como irá projetar o futuro? Como posso pensar o futuro de Três Passos, se não sei o que aconteceu ontem?”.

Para o presidente do MJDH, o Rio Grande do Sul e o Brasil precisam cada vez mais valorizar que este foi o primeiro ato de resistência contra uma ditadura brutal. “Oficialmente desapareceram 434 brasileiros e brasileiras. E os exilados, que tiveram de fugir com ou sem suas famílias? E os torturados? E as mortes não esclarecidas? E as pessoas que perderam seus empregos?”, indaga.

“A comunidade de Três Passos precisa saber do seu passado e enfrentá-lo com orgulho. Não olhando isto como algo reprovável. Pelo contrário. Se o movimento foi desorganizado, lamenta-se. Mas ele expressa uma resistência. E isso é muito importante”, reforça Krischke. O professor Graffitti finaliza opinando que a falta de preservação da memória é algo recorrente no Brasil. Mas que cabe aos educadores e pesquisadores, ao jornalismo e às instituições, de alguma forma buscarem alternativas para que fatos fundamentais para a nossa história, possam ser revisitados e conhecidos pelas atuais e futuras gerações.

Foto: Acervo de Valdetar Dornelles / Documentos Revelados
Foto: Acervo de Valdetar Dornelles / Documentos Revelados
Foto: Acervo de Valdetar Dornelles / Documentos Revelados
Foto: Acervo de Valdetar Dornelles / Documentos Revelados
Foto: Acervo de Valdetar Dornelles / Documentos Revelados

Reportagem Especial: Rádio Tertúlia Web