‘Agora eu roubo a atenção das pessoas’: como um jornal brasileiro transformou moradores de rua de uma cidade em jornalistas

Toda terça-feira à tarde, Michel Vasconcelos vai a uma feira livre em Porto Alegre, cidade do sul do Brasil , com a mochila cheia de jornais para vender, aos quais contribui com textos e ilustrações. “Eu roubava e traficava”, diz Vasconcelos, 43 anos, que acabou morando nas ruas devido a uma desavença familiar.
Foi lá que ele se envolveu, há quase 10 anos, com o projeto Boca de Rua e se tornou, em suas próprias palavras, entregador de jornais e jornalista. “Agora, roubo a atenção das pessoas e troco informações”, diz ele, sorrindo.
O Boca de Rua é um dos mais de 90 jornais desse tipo espalhados por 35 países, de acordo com a Rede Internacional de Jornais de Rua, uma organização de combate à pobreza que apoia esses tipos de publicações, normalmente vendidas por pessoas em situação de pobreza ou de rua.
O periódico trimestral sediado em Porto Alegre tem os vendedores responsáveis pelo conteúdo – desde a escolha dos temas dos artigos até a cobertura das histórias e a captura de fotografias.
Os participantes se reúnem semanalmente para escrever os artigos coletivamente. Em seguida, recebem um maço com cerca de 50 jornais, que vendem por R$ 3 (40 centavos) em frente a lojas e semáforos. Cada vendedor fica com o dinheiro que ganha.
“Na verdade, nosso jornal não tem preço”, diz Anderson Joaquim Corrêa, 45, que frequentemente recebe mais de R$ 3 por exemplar. “Se você recebe R$ 50 [£ 6,60] por dia, já está bom”, diz ele.
A presença nas reuniões é um pré-requisito para vender o jornal, mas, fora isso, todos são bem-vindos. Para a maioria, o jornal faz muito mais do que gerar uma pequena renda: dá-lhes voz.
“Não éramos vistas”, diz Michelle Marques dos Santos, de 42 anos, que participa do jornal de forma intermitente desde o lançamento do Boca de Rua, há 25 anos, pouco depois de ter começado a viver nas ruas na adolescência. Ela ainda se lembra da manchete da primeira página da primeira edição, publicada durante o Fórum Social Mundial de 2001: “Vozes de Pessoas Invisíveis”.
“O Boca ajudou pessoas em situação de rua a se tornarem visíveis, nos deu voz”, diz ela. “Escrevemos sobre o que nos incomoda. Falamos sobre violência contra a mulher, falamos sobre violência policial, falamos sobre nossa dificuldade de acesso à saúde.”
Em uma reunião semanal realizada recentemente perto do centro da cidade, uma dúzia de pessoas discute a cobertura de um incêndio em um abrigo público para moradores de rua, que matou 11 pessoas em abril do ano passado. O Boca de Rua tem reportado incansavelmente as consequências do incêndio, e um inquérito público sobre possível negligência está em andamento. Seu trabalho denunciando as péssimas condições nos abrigos da cidade foi noticiado pela grande imprensa .
“Fizemos a cobertura mais extensa sobre este incêndio e sobre as enchentes [ que devastaram a cidade no ano passado ]”, disse a cofundadora do jornal, Rosina Duarte, ao grupo.
Jornalista de profissão, a editora do Boca de Rua, Duarte, desenvolveu a ideia com jovens em situação de rua em 2000. Ela conta que cerca de 400 pessoas trabalharam no jornal desde então.
Sua cofundadora, Cristina Pozzobon, faz o layout e administra a organização editorial sem fins lucrativos, Alice , mas seu trabalho é remoto, deixando os membros gerenciarem as decisões editoriais e organizarem sua comunidade.
“Como grupo, eles têm uma capacidade impressionante de encontrar soluções para problemas que parecem intransponíveis”, diz Duarte. Quando as vendas nas ruas se tornaram impossíveis durante os lockdowns da Covid, foi um dos membros do Boca que sugeriu o lançamento de assinaturas online. A partir de 10 reais por mês, elas agora ajudam a financiar os custos de impressão.
Duarte descreve o Boca de Rua como um jornal feito por pessoas “com uma trajetória de rua”, já que a maioria dos cerca de 30 participantes conseguiu sair das ruas, embora enfatize que esse não é o objetivo do jornal. “Trata-se de [proporcionar] renda e reduzir danos – os danos do silêncio e da solidão”, diz ela.
Apesar do reconhecimento local, o Boca de Rua ainda enfrenta rejeição e preconceito. “Mas você não pode deixar que isso atrapalhe o seu trabalho”, diz Vasconcelos, que voltou para seu bairro natal.
Marques dos Santos, por sua vez, aluga um apartamento com o parceiro após superar uma longa luta contra o vício em drogas. Grávida do sétimo filho, o primeiro que poderá criar sozinha, ela continua intimamente ligada ao jornal que lhe deu um sentimento de orgulho – e a inspirou a escrever um livro sobre sua vida, com lançamento previsto para este ano.
Fonte: Constance Malleret / The Guardian