Parte dos processos originados pela CPI da Covid foram arquivados ou seguem pendentes de julgamento

Geralmente encaixado no dedo indicador para monitorar a oxigenação do sangue e a frequência cardíaca, o oxímetro é um aparelho que mede a quantidade de luz absorvida pelos vasos sanguíneos e, por meio de números luminosos exibidos na tela, apresenta informações sobre a saúde respiratória e cardiovascular do paciente. Esse dispositivo se popularizou durante a pandemia de covid-19 e pautou uma das últimas conversas entre a assistente social Gabriela Moraes e o irmão mais velho dela, o educador físico Guilherme Moraes, de 37 anos.
Em fevereiro de 2021, a ômicron – definida pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) como a variante mais transmissível do coronavírus – infectou Guilherme, sua companheira e os três filhos. Para auxiliar a família no acompanhamento da doença, Gabriela entregou um oxímetro à sobrinha e soube depois, por chamada de vídeo, que a saturação do irmão estava em 90% – cinco pontos percentuais abaixo do valor mínimo adequado.
Mesmo não se queixando de falta de ar, Guilherme foi à emergência, mas seu quadro clínico se agravou rapidamente e ele precisou ser internado na Unidade de Tratamento Intensivo do Hospital Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Figura de referência para as crianças e adultos que o cercavam, faleceu no dia 24 daquele mês, vítima de embolia pulmonar. “Tomei a minha primeira dose [da vacina] em 30 de março e chorei muito pensando o que teria acontecido se ele tivesse tomado antes”, relata Gabriela.
A vacinação contra a covid-19 iniciou no Brasil somente em janeiro de 2021, onze meses depois do primeiro caso registrado no país, e quando o consórcio de veículos de imprensa, a partir dos dados das secretarias de saúde, já havia contabilizado mais de 217 mil vidas perdidas. Grupos prioritários, como idosos, trabalhadores da saúde e povos indígenas, foram os primeiros a serem imunizados, já que eram os mais vulneráveis diante da contaminação.
Quatro anos convivendo com a ausência de Guilherme e dois anos depois de a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarar o fim da Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional referente à covid-19, entes queridos não receberam qualquer indenização. A responsabilização de agentes públicos, empresas privadas e pessoas físicas sugerida pelo relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito da COVID, que denunciou a omissão do governo federal ao “agir de forma não técnica e desidiosa no enfrentamento da pandemia do novo coronavírus, expondo deliberadamente a população”, também não prosseguiu.
O Jornal da Universidade consultou o status de onze processos originados pela CPI que corriam no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Tribunal Regional Federal da 1.ª Região. Com base na tabela dos indiciamentos divulgada pelo Ministério Público Federal (MPF), nas informações do Portal do STF e no retorno das cortes via e-mail, foi possível constatar que três expedientes foram arquivados, um foi arquivado em parte, um foi extinto, dois correm em segredo de justiça e outros cinco estão em vigência, mas ainda pendentes de julgamento.
O Jornal também solicitou ao MPF explicações sobre outros indiciamentos que constam da tabela, como os que mencionam o ex-assessor do Ministério da Saúde Airton Soligo por usurpação da função pública, e a Precisa Comercialização de Medicamentos LTDA, já condenada pela Controladoria Geral da União por fraudar a venda da vacina Covaxin. A instituição, no entanto, não retornou até o fechamento da matéria.
Memória em disputa
Com a mobilidade física da mão direita reduzida e sob o cuidado contínuo de profissionais de enfermagem, o ex-presidente do Conselho Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul Claudio Augustin contraiu o vírus em dezembro de 2020, permaneceu hospitalizado até agosto de 2021 e, desde que recebeu alta, lida diariamente com as sequelas da covid. Servidor público aposentado, Claudio esteve quatro meses entubado, resistiu a diversas pneumonias, realizou várias transfusões de sangue e passou por hemodiálise. Um sobrevivente, Claudio não pode escolher esquecer a pandemia nem por um instante, pois ela está materializada em seu corpo.
“A visão que eu tenho é de que as consequências da covid foram mais graves do que as consequências de uma guerra. Deveria haver uma política de recuperação das pessoas [com sequelas] e, ao mesmo tempo, uma política de responsabilização de quem cometeu esses crimes”
Claudio Augustin
Se a apuração da culpa pelos efeitos irreparáveis do coronavírus e a reparação pelos danos causados aos cidadãos não avançam, ciência e sociedade civil seguem organizadas para impedir que o Brasil deixe de lembrar do superfaturamento de respiradores no Amazonas, da disseminação de notícias falsas, do incentivo a tratamentos sem eficácia comprovada e das histórias que foram interrompidas.
A Associação de Vítimas e de Familiares de Vítimas de Covid-19 (Avico), da qual Gabriela faz parte, e a Associação Vida e Justiça apoiaram no ano passado, junto de outras entidades, uma representação criminal que exige da Procuradoria-Geral da República (PGR) o andamento dos processos contra autoridades com foro privilegiado. “Sabemos que as mortes poderiam ser evitadas se tivéssemos a estrutura que o Governo Federal deveria ter colocado à disposição da nossa população. O sentimento é de angústia e até de revolta, porque precisamos penalizar quem teve o poder da caneta”, aponta a médica de família e coordenadora nacional da Vida e Justiça, Rosângela Dornelles.
O Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário da Universidade de São Paulo (Cepedisa/USP), por sua vez, além de ter sistematizado a responsabilização penal pela pandemia, detectou 147 iniciativas de memória que buscam preservar as lembranças do que ocorreu no país entre 2020 e 2022. As autoras do artigo Cristiane Ribeiro e Mariana Cabral, doutorandas em Relações Internacionais, e Rossana Reis, professora da USP, defendem a criação de uma política de memória articulada pelo Estado em parceria com a população a fim de revigorar a confiança no Sistema Único de Saúde (SUS) e, portanto, fortalecer a democracia.
“Existe um esforço de apagamento, principalmente no que diz respeito à responsabilização, ou seja, de quem foram os responsáveis pelo que aconteceu durante a covid-19. Existem pessoas que lembram dela [pandemia] todo dia, ao mesmo tempo que existem pessoas acordando todo dia tentando fazer com que ela seja esquecida”
Mariana Cabral
Dos projetos memorialísticos computados pelas pesquisadoras, a maioria havia sido idealizada por pessoas comuns e associações. Em março de 2024, a então ministra da Saúde, Nísia Trindade, anunciou a construção do Memorial da Pandemia de Covid-19, que será instalado no Centro Cultural do Ministério da Saúde, no Rio de Janeiro. As obras estão em andamento e o edital de seleção da empresa responsável por desenvolver o monumento e a exposição de longa duração está sendo elaborado, de acordo com esclarecimentos obtidos pelo JU via Lei de Acesso à Informação.
Questionada sobre espaços e atividades alusivas à memória das vítimas já realizadas pelo Ministério, a pasta citou a exposição “Trajetórias do Cuidado: A força do SUS diante da Pandemia de Covid-19“, que está em cartaz no Espaço Cultural Dona Ivone Lara, no prédio da instituição, em Brasília. O ambiente físico e digital do Memorial tem inauguração prevista para o primeiro semestre de 2026.
Para Cristiane, os pactos democráticos rompidos durante a pandemia em função das violações de direitos humanos e do trauma coletivo só serão restaurados se a covid for encarada não apenas enquanto emergência sanitária, mas como uma crise humanitária que demanda políticas de verdade, justiça, reparação e memória. “É necessário fazer uma elaboração do não esquecer para construir dialeticamente o futuro.”
Fonte: Jornal da Universidade / Sul 21