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Homenagem aos Lanceiros Negros reúne lideranças no aniversário do Massacre de Porongos

Evento em Pinheiro Machado celebra os 181 anos do massacre e mobiliza movimento negro, estudantes e gestores públicos em prol de memorial aos lanceiros e tombamento de Porongos

Foto: Thayse Uchôa

O dia 14 de novembro marcou o aniversário de 181 anos do Massacre de Porongos, quando centenas de soldados negros (lanceiros negros), desarmados, foram mortos na penúltima batalha da Revolução Farroupilha, em Cerro dos Porongos, hoje município de Pinheiro Machado.

No dia seguinte à data, no último sábado 15 de novembro, um ato marcou um novo capítulo na mobilização pelo reconhecimento dos Lanceiros Negros como heróis da guerra mais importante da história do Rio Grande do Sul. O encontro, no sítio histórico do Cerro dos Porongos, reuniu lideranças, estudantes, movimentos sociais, parlamentares, prefeitura de Pinheiro Machado e gestores públicos.

Vinte anos após o movimento para a criação de um memorial aos Lanceiros Negros no sítio histórico onde ocorreu o massacre, o local onde foram mortos os combatentes negros – que se destacavam pela bravura e destreza no uso de lanças como armas – , o Cerro dos Porongos, segue sem sinalização, sem proteção e praticamente desconhecido até mesmo por moradores de Pinheiro Machado.
Para mudar esse cenário e enfrentar esse apagamento da história, a prefeitura promoveu um encontro no Cerro dos Porongos. A atividade, chamada Eco dos Porongos, reuniu representantes de movimentos negros de diversas cidades, quilombolas, estudantes, professores, lideranças políticas e pesquisadores. A mobilização reafirmou o desejo por reconhecimento aos Lanceiros Negros e o atraso histórico do Estado em assegurar preservação ao sítio de Cerro dos Porongos.

Um sítio histórico isolado e esquecido pelo poder público

O Cerro de Porongos é um local de difícil acesso. Fica a cerca de 30 quilômetros do centro de Pinheiro Machado. Depois da rodovia BR-293, são 19 quilômetros de estrada de chão sem qualquer sinalização. Sem cobertura de celular ou internet, muitos visitantes dependeram de aplicativos de navegação que deixaram de funcionar no meio do caminho. O isolamento do campo, aliado ao calor extremo que fazia no sábado, 38,5ºC, reforçou a sensação de abandono de um dos sítios históricos mais relevantes da presença negra no Rio Grande do Sul.

Atualmente, o local não oferece ao visitante mais do que vestígios dispersos de memória. Na entrada, um pórtico enferrujado anuncia “Sítio dos Porongos”, mas há pouquíssimas indicações do que ocorreu ali. Poucos metros adiante, uma pedra registra homenagens do CTG Rincão da Fronteira, datada de 11 de setembro de 2013. Na mesma base, outra placa, instalada pela Loja Maçônica em 2015, pelos 171 anos da batalha, tenta registrar uma história que permanece à espera de reconhecimento oficial.

Um pouco mais adiante, outra pedra rompe a paisagem de abandono. É a homenagem feita em 2004 pelo movimento negro, trazendo o poema Ancestralidade, do poeta senegalês Birago Diop que, por ação do tempo, já está bastante pagada.

Ouça no vento
O soluço do arbusto:
É o sopro dos antepassados.
Nossos mortos não partiram…

A presença do poema e das placas de homenagens contrasta com a precariedade estrutural ao redor, como se o território insistisse em contar essa história por si só. No entanto, basta subir o morro e atravessar uma pequena mata fechada para que se encontre o ponto mais sensível de todo o Cerro: uma área cercada por uma estrutura de ferro, onde estariam sepultados os Lanceiros.

A placa que identifica o local já está tomada pelo tempo, totalmente ilegível, e acima dela uma cruz com as letras “MLN”, referência ao Movimento Lanceiros Negros, tenta preservar o que resta da memória física desse território marcado por violência e resistência.

Para viabilizar a atividade de 15 de novembro, a prefeitura montou uma infraestrutura básica, com banheiros químicos, ambulância, sistema de som, cadeiras, gazebos de sombra, lixeiras, água e um almoço comunitário. Apesar das dificuldades logísticas, a comunidade compareceu e muitos admitiram desconhecer que o massacre ocorreu ali, no município onde vivem.

Foto: Thayse Uchôa (Extra Classe)

Educação, arte e memória como caminho de reparação

Ao meio-dia, a exibição do filme curta-metragem Lanceiros Negros – Apagados da História, produzido por estudantes da Escola Neli Betemps, de Candiota, emocionou o público. O filme venceu o prêmio principal do Festival Corre Cinema, de Arroio Grande.

A professora e realizadora do projeto, Juacema Costa Lima, reforçou a dimensão política do trabalho: “Nós trazemos no filme a importância de colocar essa história triste e dolorosa no debate atual, valorizando devidamente a memória dos Lanceiros que lutaram por liberdade.”

Nove escolas da região participaram da programação, alinhadas à Lei 10.639/2003, que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira. Entre as apresentações, destacou-se a encenação da Escola Ana Tereza da Rosa, de Torrinhas, que reconstituiu a Traição de Porongos, baseada em documentos oficiais da época.

A programação cultural também contou com apresentações que aproximaram a matriz africana e a cultura gaúcha. A Invernada Alma Gaúcha interpretou a canção Coxilhas e Orixás, enquanto a Cia de Dança Daniel Amaro apresentou a Dança para os Orixás, unindo gesto, corpo e território em uma homenagem aos ancestrais.

Equipe do curta-metragem Lanceiros Negros – Apagados da História (Foto: Extra Classe)

Movimentos negros, sindicatos e pastorais ocupam Porongos

A presença de movimentos sociais foi marcante e deu ao encontro uma dimensão de mobilização que ultrapassa fronteiras municipais. Representantes da Federação Nacional das Associações Quilombolas (Fenaq), do Sindicato dos Servidores da Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (SINDJUS-RS), do Sindicato das Trabalhadoras Domésticas de Pelotas e uma Caravana Pelotas estiveram no Cerro dos Porongos, ao lado de integrantes dos Agentes de Pastoral Negros do RS, do Quilombo Maria Alina, de São Lourenço do Sul, da Pastoral do Imigrante, da Pastoral Afro da Arquidiocese de Pelotas, do Grupo Raízes Negras e da Pastoral Popular Luterana. Também participaram educadores e sindicalistas ligados ao Centro dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul (Cpers-Sindicato), além do artista plástico Zé Darci, que há anos pesquisa e produz obras sobre ancestralidade negra na região.

O encontro reuniu ainda representantes do Instituto Ateliê da Laje, de Arroio Grande, e autoridades locais como Ana Cláudia Pereira, coordenadora de Cultura e Turismo; Dinamara Oliveira, secretária de Educação; Marcela Meireles, diretora da Casa de Cultura de Bagé; e Gilmar Pinheiro, chefe do Escritório Técnico Fronteira Sul do IPHAN/RS. A diversidade de organizações e lideranças presentes reforçou que a luta pela memória de Porongos é coletiva e cada vez mais estruturada, em defesa doreconhecimento público dos Lanceiros Negros e do local histórico.

Debate político e pressão por reparação a memória dos lanceiros

A tarde foi marcada por um debate político sobre “A memória dos Lanceiros Negros e o legado de Porongos”. A mesa contou com a presença do prefeito Ronaldo Costa Madruga, da vice-prefeita Laura Ratto Finkler, da secretária Sandra Farias, das deputadas estaduais Bruna Rodrigues e Laura Sito, da representante do senador Paulo Paim, Rosa Claudete, e da vereadora Samanta Porto Rochel.

Mesmo sendo um evento cultural e educativo, a programação se transformou em espaço estratégico de articulação. Representantes do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) de Pelotas, sindicatos, lideranças do movimento negro e autoridades municipais, estaduais e federais reforçaram a urgência de destravar dois processos históricos parados: o tombamento federal de Cerro dos Porongos, sob responsabilidade do Iphan, e a construção do Memorial aos Lanceiros Negros, cuja tramitação na Fundação Cultural Palmares está estagnada desde 2005.

Em mensagem em vídeo enviada ao evento, o senador Paulo Paim reafirmou apoio à construção do memorial. “Reverencio e declaro os meus respeitos aos Lanceiros Negros, Heróis da Pátria, e me coloco à disposição para tirarmos do papel a ideia de um memorial que valorize essa história ainda no governo do presidente Lula.”

A deputada Bruna Rodrigues ressaltou a dimensão simbólica da data, a importância da representatividade negra na condução do evento e a possibilidade de inserir a cidade entre Rotas Turísticas do RS. “Esse evento é também uma forma de reparar a memória de quem lutou por liberdade, além de um movimento para reforçarmos a importância de uma rota turística que valorize Pinheiro Machado como um dos principais pontos turísticos do Estado.”

Bruna Rodrigues teve um papel decisivo na realização do evento ao destinar R$ 100 mil em emendas parlamentares, verba que garantiu a estrutura da programação e também será utilizada para a instalação das tão aguardadas placas de sinalização no acesso ao Cerro dos Porongos, uma das principais reivindicações da comunidade.

Segundo a prefeitura, a execução dessa etapa depende agora do aval do governo estadual: “Assim que o Estado aprovar o plano de trabalho, daremos início à confecção, bem provável que até o findar do ano, essa é a expectativa.”

A deputada Laura Sito também esteve presente e reforçou o impacto da iniciativa: “Vocês estão fazendo com que esse espaço seja mais do que uma linha nos livros de história.”

Já o prefeito Madruga destacou o papel do curta-metragem Lanceiros Negros – Apagados da História na mobilização recente: “A partir desse filme uma chama se acendeu e colocou foco em uma história que nós não estávamos dando a devida atenção.” E completou: “Esse movimento é para além dos Lanceiros, é para que vidas não sejam mais ceifadas em nome da liberdade.”

Gilmar Pinheiro, chefe do Escritório Técnico Fronteira Sul do Iphan-RS e a secretária de Turismo Sandra Farias (Foto: Thayse Uchôa)

Afroturismo: Porongos pode seguir o caminho da Serra da Barriga

O encontro reforçou o potencial de Porongos no crescente campo do afroturismo, segmento do turismo que valoriza territórios marcados pela presença, resistência e ancestralidade negra. Nos últimos anos, o Brasil tem assistido à consolidação dessa modalidade: a Serra da Barriga, em Alagoas, tornou-se referência ao transformar o antigo Quilombo dos Palmares em um destino de aprendizagem, identidade e turismo histórico.

Especialistas presentes destacaram que Porongos reúne elementos comparáveis: um sítio de resistência negra, um marco histórico de luta e traição, e um território carregado de simbolismo. No entanto, enquanto Palmares tornou-se patrimônio protegido, Porongos segue sem tombamento, sem infraestrutura básica e sem presença contínua do Estado.

A construção do Memorial aos Lanceiros Negros e a implementação de sinalização e infraestrutura mínima poderiam inserir o Cerro dos Porongos em rotas nacionais de turismo de memória negra, ampliando oportunidades culturais, educacionais e econômicas para toda a Região Sul do Brasil.

Um passo adiante e muitos desafios pela frente

O evento encerrou sem anúncios formais, mas com um compromisso simbólico público e político: seguir avançando nas tratativas para que o Cerro de Porongos deixe de ser um ponto perdido no mapa e se torne, finalmente, um lugar com estrutura de memória reconhecida e protegida.

O encontro evidenciou um interesse que cresce a cada ano, de uma comunidade negra, quilombola, escolar, artística e política que se recusa a deixar que o massacre de 1844 permaneça esquecido. Até que o tombamento de Cerro dos Porongos avance e o Memorial aos Lanceiros Negros seja criado, iniciativas da socidade, como a que ocorreu no sábado, que mantêm acesa a chama da história dos Lanceiros e da reparação à história do povo negro no Rio Grande do Sul.

Fonte: Thayse Uchôa e Naira Hofmeister (Extra Classe)