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Do RS para o Brasil: a trajetória do Grupo Palmares na construção do 20 de Novembro

Antônio Carlos Côrtes e Naiara Silveira relembram origem da data e impactos na luta antirracista

Estátua de Zumbi dos Palmares inaugurada em 20 de novembro de 2024 em Porto Alegre
| Crédito: Jorge Leão

Na noite de 20 de novembro de 1971, em plena ditadura militar, acontecia no Clube Náutico Marcílio Dias, um clube social negro de Porto Alegre, a primeira celebração de uma data de reflexão e luta por igualdade racial no Brasil escolhida pelo próprio povo negro. Organizado pelo Grupo Palmares, o evento fazia contraponto ao 13 de maio de 1888, dia que a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea, oficializando o fim à escravidão, mas sem garantir direitos humanos à população negra. Em vez disso, evocaram o dia da morte de Zumbi dos Palmares como marco de resistência, plantando as sementes do que viria a se tornar, mais de 50 anos depois, o feriado nacional do Dia da Consciência Negra.

O Grupo Palmares foi fundado por Oliveira Silveira, Antônio Carlos Côrtes, Ilmo da Silva e Vilmar Nunes. Único ainda vivo, hoje com 76 anos, o advogado, psicanalista, jornalista e escritor Antônio Carlos Côrtes revisita a origem da data. Recorda que os integrantes do grupo eram ligados à Sociedade Floresta Aurora, fundada em 1872 e a mais longeva das sociedades negras criadas no estado no século 19.

“Éramos da Sociedade Floresta Aurora, mas saímos formalmente para não causar problemas à diretoria, em plena ditadura”, conta. Para Côrtes, que considera o Rio Grande do Sul o estado mais racista do Brasil, não há valorização local pelo nascimento da celebração do 20 de Novembro em Porto Alegre. “Até hoje, a cidade que o originou não lhe dá o devido reconhecimento.”

A capital gaúcha resistiu a instituir o feriado do Dia da Consciência Negra, que antes de ser uma celebração nacional já era reconhecido em mais de mil municípios brasileiros. “A Câmara de Vereadores de Porto Alegre chegou a aprovar, mas os lojistas entraram na Justiça alegando inconstitucionalidade. Só em 2023, com o presidente Lula, o 20 de Novembro virou feriado nacional”, recorda.

Primeiro ato evocativo ao 20 de Novembro, em 1971, no Clube Náutico Marcílio Dias, em Porto Alegre | Crédito: Acervo Instituto Oliveira Silveira

Raízes e legado de Oliveira Silveira
O nome mais conhecido do Grupo Palmares é o do poeta, professor e escritor Oliveira Silveira. Com uma vasta produção literária desde os anos 60, firmou-se como um dos intelectuais de destaque do movimento negro no país. Faleceu em 2009, aos 67 anos, e hoje sua militância é amplamente reconhecida. “Infelizmente ele não teve todo esse reconhecimento merecido ainda em vida”, afirma Côrtes.

Quem carrega o legado de Oliveira Silveira atualmente é sua única filha, Naiara Rodrigues Silveira. Ela cresceu em meio ao movimento negro, ao lado do pai, e herdou a história de luta. Da mesma forma que Côrtes, ela destaca o protagonismo do Rio Grande do Sul no surgimento da data, através do Grupo Palmares, e critica a falta de políticas públicas para preservar o patrimônio histórico.

Silveira conta que o 20 de Novembro nasceu no início dos anos 1970, quando jovens de clubes negros de Porto Alegre passaram a questionar o 13 de Maio. “Eles viram que a data não nos representava e foram pesquisar outra com maior significado”, relata. O grupo encontrou em um livro a referência à morte de Zumbi dos Palmares, ocorrida em 1695.

“Zumbi é o símbolo da resistência. Não havia a data de nascimento dele, mas a morte já era um marco da luta. A partir dali, o Grupo Palmares começou a evocar o 20 de Novembro”, explica Silveira. O primeiro encontro ocorreu em 1971, no Clube Náutico Marcílio Dias, registrado pela censura como reunião de teatro, “para driblar a ditadura”, segundo a filha do poeta.

Da inquietação à luta
A busca de uma data que melhor representasse a luta contra o racismo nasceu antes da oficialização do Grupo Palmares, quando o grupo de amigos se encontrava no centro de Porto Alegre para discutir filmes após sessões de cinema. Ao contar essa história, Côrtes relembra de sua infância em Porto Alegre. Foi quando iniciaram os fatos de sua vida que forjaram as inquietações sobre o preconceito racial.

Nascido na antiga Colônia Africana, ele carrega na memória as marcas do deslocamento forçado das famílias negras para a periferia. Filho de um funcionário da Loteria do Estado, estudou com os irmãos no Colégio Nossa Senhora das Dores. Como a família não ganhou bolsa de estudos para todos, a escola sugeriu garantir as vagas em troca dos irmãos varrerem as salas de aula do primário uma hora antes da entrada. “Era trabalho infantil, que só depois percebemos. Mas o gesto de solidariedade dos colegas brancos, que vinham ajudar, mostrava a pureza das crianças”, relembra.

Já na juventude vieram os encontros com amigos negros que compartilhavam das mesmas inquietações. Ele conta que um dos colegas, Jorge Antônio dos Santos, se revoltava com a relevância dada ao 13 de Maio. “Quando entrei na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), um professor me disse que a Lei Áurea tinha só dois artigos, abolindo a escravidão e revogando disposições em contrário, e nada mais. Aquilo me inquietou ainda mais”, conta.

Na Biblioteca Pública do Estado, Côrtes encontrou o livro O Quilombo dos Palmares, de Edison Carneiro. Em busca de uma data relevante, ele tentou encontrar o dia de nascimento de Zumbi, mas só encontrou o da morte: 20 de novembro de 1695. “Levei ao grupo e propus que nos chamássemos Grupo Palmares. Foi unanimidade.”

Repercussão nacional
Côrtes recorda que foi a imprensa de fora do Rio Grande do Sul que deu repercussão às propostas do Grupo Palmares. “Nenhum jornal daqui quis publicar. Mas um jornalista do Jornal do Brasil, de Cachoeira do Sul, escreveu quatro linhas: ‘Quatro negros universitários de Porto Alegre dizem não ao 13 de maio da Princesa Isabel e sim ao 20 de novembro de Zumbi dos Palmares’. Isso explodiu e chegou a São Paulo”, lembra.

A data começou a ser valorizada por coletivos negros em diversas cidades brasileiras e se tornou nacional com a fundação do Movimento Negro Unificado (MNU), em 7 de julho de 1978. “Foi o poeta Oswaldo de Camargo quem sugeriu, num evento em Salvador, que a data fosse chamada de Dia da Consciência Negra. Dali em diante, mais de mil cidades brasileiras a reconheceram”, afirma Côrtes.

O poeta e o território afro-gaúcho
Naiara Rodrigues Silveira destaca a forte ligação do pai com suas raízes afro-gaúchas. Nascido no distrito de Toropasso, em Rosário do Sul, Oliveira Silveira foi alfabetizado em um pequeno cômodo por uma professora que chegava a cavalo. Mudou-se para seguir estudando, formou-se professor na Ufrgs e manteve por toda a vida a ligação com o campo, a família e as tradições regionais.

“Essa identidade aparece de forma marcante em sua obra. Além do clássico Pelo Escuro (1977), ele escreveu livros que homenageiam sua família, o interior, o bandoneon do tio e a vida no espaço rural, um traço característico da poesia afro-gaúcha, que também dialoga com instrumentos como o sopapo, tambor ancestral de origem negra presente no extremo Sul e símbolo da força da cultura afro-gaúcha”, afirma.

Durante a entrevista, ela recitou um trecho do Poema sobre Palmares, no qual Oliveira Silveira narra a fuga, o reencontro e a libertação do negro que chega ao quilombo. O poema, segundo ela, “é uma aula de história”.

Nos pés tenho ainda correntes,
nas mãos ainda levo algemas
e no pescoço gargalheira,
na alma um pouco de banzo
mas antes que ele me tome,
quebro tudo, me sumo na noite
da cor de minha pele,
me embrenho no mato
dos pelos do corpo,
nado no rio longo
do sangue,
vôo nas asas negras
da alma,
regrido na floresta
dos séculos,
encontro meus irmãos,
é Palmar,
estou salvo!

Para a filha do poeta, a arte foi e segue sendo um dos principais canais de visibilidade da população negra. “A arte é o meio da gente se mostrar. Eu não consigo imaginar nossa história sem ela. É através dela que a gente abre caminhos e ultrapassa muros difíceis”, afirma. Ela recorda que pai transitou entre poesia, música, tradição e movimentos culturais.

Instituto e preservação da memória afro-gaúcha
Nos 50 anos da data em que o Grupo Palmares anunciou o 20 de Novembro como o Dia da Consciência Negra, foi criado o Instituto Oliveira Silveira. A entidade desenvolve ações ligadas ao carnaval, ao tradicionalismo, à educomunicação e ao legado afro-gaúcho. “É a vertente que começa no Grupo Palmares e nunca parou. Nem na pandemia deixamos de nos reunir”, afirma Silveira.

Entre as atividades está a criação do Piquete Pêlo Escuro, dentro do Acampamento Farroupilha, festa que comemora a Guerra Farroupilha anualmente em Porto Alegre. Em meio ao apagamento da história do povo negro na constituição do Rio Grande do Sul, o espaço construído com apoio da Ufrgs e da Unipampa tem se tornado referência por abrigar poesia, memória e cultura afro-gaúcha dentro do tradicionalismo gaúcho.

Durante as três semanas de festejos, o piquete recebe escolas, turistas, delegações internacionais e oferece atendimento com intérpretes de Libras e acolhimento para crianças autistas. A visibilidade levou o piquete a ser convidado para integrar o conjunto permanente do Parque Harmonia. Mas Silveira vê a proposta com o futuro incerto. “Não sei se o piquete vai continuar. Temos um projeto completo, acessível, pronto para atender o público o ano todo. Só falta vontade política.”

Para a filha de Oliveira Silveira, a demora na concretização da promessa soma-se à falta de um espaço físico para preservar e difundir a memória negra da cidade. O acervo do Instituto Oliveira Silveira, com jornais, documentos, fotografias, vídeos e materiais de clubes negros, está sob guarda temporária da Ufrgs. “Falta interesse. Não valorizam essa parte da nossa história”, critica.

Avanços e desafios do movimento negro
Mais de cinco décadas depois, Côrtes avalia os avanços e os desafios do movimento negro. “Nós precisamos de um letramento racial. A Lei 10.639 obriga o ensino da história da África e da cultura afro-brasileira nas escolas, mas ela precisa ser vivida, conscientizada, não apenas cumprida no papel”, defende.

Para ele, a ausência de políticas estruturantes perpetua a desigualdade. “Antes de 1888, o negro produzia o algodão, o café, a cana, o linho. Era a base da economia. Depois da abolição, foi jogado nos braços da legislação penal, rotulado de vagabundo. A polícia foi criada para proteger o patrimônio dos senhores, não a vida da população. Isso se reflete até hoje, quando a polícia é o único braço do Estado que sobe o morro, e sobe para matar”, denuncia.

Côrtes cita dados e exemplos como a recente chacina no Rio de Janeiro, que revelam a continuidade da violência e da exclusão. “A cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado no Brasil. A periferia continua sem saneamento, sem água, sem luz. E se chama isso de combate ao tráfico. O problema é social, não apenas criminal”, afirma.

Ele também critica o racismo cotidiano e institucional em Porto Alegre. “Há cerca de 20 anos, o ônibus da linha Santana era chamado de ‘navio negreiro’. O condomínio Santa Isabel, de ‘Carandiru’. A Cohab Cavalhada, de ‘Planeta dos Macacos’. Isso mostra como o racismo segue entranhado na cidade”, denuncia.

Para Côrtes, o Rio Grande do Sul é “ao mesmo tempo o estado mais racista e um território profundamente negro”. “Somos 20 a 30% da população, mas não estamos representados nas câmaras, nas secretarias, nos governos. Tivemos exceções, como Alceu Collares, o único prefeito e governador negro, mas a regra é a exclusão”, critica.

Antônio Carlos Côrtes é o único membro fundador do Grupo Palmares vivo | Crédito: Marcelo Ferreira

“Trocaria todas as honrarias que recebi por medidas afirmativas coletivas”

Integrante da Academia Rio-Grandense de Letras, Côrtes é o terceiro homem negro a ocupar uma cadeira em 124 anos de história. Ele cita que, neste ano, Ana Maria Gonçalves ingressou na Academia Brasileira de Letras (ABL), a primeira mulher negra a ocupar uma cadeira na instituição. “Vemos avanços, mas ainda é pouco. Estamos cansados de ser os únicos. Queremos o coletivo”, afirma.

Ao longo da vida, foi condecorado em 2021 com a medalha Simões Lopes Neto, condecoração do governo do Rio Grande do Sul. Em 2015, recebeu o título de Cidadão Emérito de Porto Alegre. “Não pelo trabalho como negro ou fundador do Palmares, e sim como radialista e jornalista”, lamenta.

O fundador do Grupo Palmares encerrou a entrevista com um apelo. “Trocaria todas as honrarias que recebi por medidas afirmativas coletivas. O 20 de Novembro é um símbolo, mas a luta é diária. Precisamos de consciência, de ação e de reconhecimento da história que começou aqui, em Porto Alegre.”

Fonte: Fabiana Reinholz e Marcelo Ferreira / Brasil de Fato RS