Analista de sistemas e matemático Giuseppe Janino afirma que equipamento sempre desagradou parte da classe política
Pouquíssimos personagens brasileiros foram tão falados, comentados e debatidos ao longo de 2022 como o sistema de computador que, a partir de 1996, se tornou parte indissociável do próprio processo democrático da nação: a urna eletrônica.
Para um dos criadores do sistema, o matemático e analista de sistemas Giuseppe Janino, esse movimento visando a desacreditar a votação digital começou a se fortalecer há oito anos, impulsionado por “um grupo que pretende efetivamente desestabilizar o processo democrático e desqualificar a própria urna eletrônica, sustentáculo do processo”.
E as estratégias desse grupo, conforme avalia Janino, tomaram forma sobretudo depois da ascensão do republicano Donald Trump nos Estados Unidos, força política conservadora que acabou inspirando militantes de extrema direita em todo o mundo, inclusive apoiadores de Jair Bolsonaro no Brasil.
Neste ano em que as urnas eletrônicas foram, mais uma vez, protagonistas no Brasil, Janino lançou o livro O Quinto Ninja, em que conta um pouco dos bastidores da criação do sistema. Gaúcho de Canoas, ele tinha 35 anos quando, em 1996, passou no concurso de analista de sistemas do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e se tornou um dos desenvolvedores da urna.
“Sempre houve questionamentos com relação à urna eletrônica justamente porque ela própria incomodou e ainda incomoda alguns segmentos da classe política”, comenta em entrevista à DW. “Aqueles que se beneficiavam de fraudes certamente ficaram incomodados.”
Durante 15 anos, o matemático foi Secretário de Tecnologia da Informação do TSE. Atualmente ele é consultor em eleições digitais e conselheiro da organização internacional Project Management Institute em Brasília.
DW: Neste ano foram muitos os questionamentos em relação à segurança da urna eletrônica. Como um dos desenvolvedores, como você responde a isso?
Giuseppe Janino: Questionamentos sempre houve, desde a criação. Infelizmente, eles foram intensificados nos últimos oito anos e nós podemos identificar a causa desse aumento justamente como uma estratégia de um grupo que pretende efetivamente desestabilizar o processo democrático e desqualificar a própria urna eletrônica, sustentáculo do processo. E a estratégia é desqualificar, colocar informações tendenciosas, falsas, no sentido de que se possa, uma vez desqualificadas as imagens do processo eleitoral e da urna eletrônica, questionar posteriormente quaisquer resultados que não sejam de acordo com esse grupo.
O que garante que a urna eletrônica brasileira é 100% confiável?
Justamente a sua história. Basta olhar: são 26 anos de utilização, e não há sequer um caso de fraude evidenciado. Sempre que há suspeições, estas são formalizadas e investigadas por instituições independentes e competentes como o Ministério Público e a Polícia Federal. E a história demonstra efetivamente que não há sequer um caso de fraude evidenciada. Isso é uma evidência de que a urna eletrônica é 100% confiável.
Se o sistema já está em uso há tanto tempo, porque esses questionamentos se tornaram mais intensos nos últimos anos?
Sempre houve questionamentos com relação à urna eletrônica justamente porque ela própria incomodou e ainda incomoda alguns segmentos da classe política […]. Aqueles que se beneficiavam de fraudes certamente ficaram incomodados. E isso se intensificou principalmente depois das eleições americanas de 2016, quando foi eleito Donald Trump. Ali surgiu uma novidade: a avalanche de fake news utilizando-se da desinformação. Herdamos essa estratégia nas eleições de 2018 [quando foi eleito Jair Bolsonaro], quando as fake news apareceram e trouxeram o questionamento, principalmente por aqueles que desejavam desestabilizar a credibilidade do processo eleitoral e democrático, às urnas eletrônicas. Com as redes sociais e as notícias falsas, tivemos um novo cenário. Esse aumento nos questionamentos foi potencializado por essa onda que surgiu a partir de 2016, com o uso das fake news com um potencial instrumental, tecnológico, por meio das redes sociais.
Quando a urna eletrônica passou a ser utilizada, ainda de forma parcial, em 1996, quais eram suas expectativas?
Era a introdução, a mudança do paradigma convencional para o digital. Um terço das seções eleitorais, em 1996, experimentava ali a urna eletrônica pela primeira vez. A expectativa, a preocupação, era justamente como o cidadão brasileiro iria se comportar diante dessa grande transformação, abandonar as cédulas de papel para interagir com um computador. Houve iniciativas no sentido de capacitar o eleitorado brasileiro, com urnas colocadas [antes do dia da eleição] em praças, shoppings centers e locais de grande circulação.
Pelo fato de a urna ter sido construída de maneira intuitiva, o resultado superou muito as expectativas. Todos os eleitores se adequaram ao voto pela urna eletrônica e a surpresa foi que aqueles cidadãos que estavam à margem do processo de votação [com as cédulas], conseguiram, a partir daí, interagir com o processo eleitoral. O analfabeto, o deficiente visual, o indígena, o idoso, pelo fato de a urna ser intuitiva, foram melhor incluídos. Conseguiu-se resgatar segmentos da sociedade.
E quanto às dificuldades? Há algum relato a respeito?
Há várias histórias bastante curiosas. Nas eleições municipais de 1996, na inauguração da própria urna eletrônica, havia uma expectativa e uma preocupação de como o eleitor haveria de se comportar diante dessa mudança importante no processo, como ele iria interagir com a urna eletrônica. Apesar de toda a campanha feita, ainda existia bastante insegurança por parte do eleitor em termos de como ele iria se comportar diante da urna eletrônica. Em uma seção eleitoral no estado do Rio de Janeiro, os mesários costumavam levar um lanchinho e, nessa, eles sofisticaram um pouco e também levaram um micro-ondas para esquentar o lanchinho. Deixaram o equipamento em um canto da sala. Durante a votação, entrou uma senhora bastante ansiosa, nervosa, insegura. Ela se dirigiu ao canto para votar e, quando interagia com o equipamento, um mesário foi atrás dela. A senhora perguntou o que tinha acontecido, se ela estava votando errado. “Não, a senhora está votando certo, mas está votando no equipamento errado”, respondeu o mesário. Ela estava digitando o número no micro-ondas e não na urna eletrônica. Diz-se que esse foi o voto mais quente da história.
*Fonte: Edison Veiga (DW Brasil)