Especial “Veteranos” está sendo publicado às segundas-feiras de setembro no Segundo Caderno de Zero Hora
Ao longo das segundas-feiras de setembro, a série Veteranos traz trajetórias e reflexões de nomes seminais da música regionalista do Rio Grande do Sul. Além de um depoimento na capa do Segundo Caderno, os personagens também são apresentados em um quadro no programa Gaúcha+, no ar a partir das 15h, na Rádio Gaúcha.
O segundo capítulo apresenta Pedro Ortaça, 81 anos. É o último Tronco Missioneiro — identificação que inclui Noel Guarany (1941-1998), Cenair Maicá (1947-1989) e Jayme Caetano Braun (1924- 1999) —, composto por artistas que forjaram uma nova identidade na música regionalista, trazendo críticas sociais e valorizando a história do RS. Natural de São Luiz Gonzaga, nas Missões, Ortaça imortalizou seu nome no cancioneiro gaúcho com Timbre de Galo, Bailanta do Tibúrcio, Queixo Duro, entre outros.
Leia o segundo depoimento da série Veteranos
Antes de eu nascer, já existia a Bailanta do Tibúrcio. Era uma reunião de vizinhos do Pontão de Santa Maria, onde bailavam, comiam e sorriam.
Quando fui levado à Bailanta, tinha quatro ou cinco anos. Nossos pais nos colocavam num quartinho para dormir, enquanto se divertiam. Só que eu sentia uma curiosidade: pelas frestas da parede, espiava tudo aquilo. O baile e a música tomavam conta do lugar e me inspiravam. Ficava tão alegre!
Hoje entendo que era um dom vindo do meu avô, Quintino Martins dos Santos, um gaiteiro. Na família, todos arranhavam um pouquinho: minha mãe com a acordeona, e meu pai com o violão. Lembro deles tocando e sinto muita saudade.
Comecei a cantar no colégio Senador Pinheiro Machado, em São Luiz Gonzaga, entre 10 e 12 anos. A professora reunia todos os alunos de roupa guarda-pó para entoar o hino. Eu cantava e sentia algo diferente.
Mas me criei trabalhando. Quando tinha 15 ou 16 anos, fui para São Borja trabalhar de foice numa granja de arroz. Uns faziam taipa, e outros cortavam de foice. Era tudo manual, não existia máquina. Lembro até hoje daqueles galpões que existiam nas arrozeiras, com gente de tudo que era rincão. Nós trabalhávamos com tanta vontade. Eu trabalhei, e muito, me orgulho de não ter nascido em berço de ouro.
Sempre gostei de tocar e cantar. Nunca pensei em dinheiro ou em ser artista, simplesmente veio ao natural. A gente começa nos bailes de campanha, nas bailantas, nas reuniões de amigos, nas canchas de bocha, nos galpões da nossa terra. Esse é o jeito que a pessoa desenvolve o dom sem estudar. Sempre sentei nos fogos de chão, com meus amigos, e escutei as pessoas mais velhas dizerem as coisas lindas que o mundo ensinou. Foi assim que meu dom se despertou cada vez mais. Chegava a fugir de casa quando era pequeno e ia escutar esses homens falarem essa prosa de galpão. Isso me inspirou para continuar cantando e vendo as necessidades que tem o ser humano das coisas. Se falta água, se falta comida. Por isso eu canto a raça humana, a alegria, a tristeza, a brincadeira.
Sinto muita saudade do Noel, do Cenair e do Jayme. Tínhamos, essencialmente, uma relação de amizade. Um confiava no outro, um defendia o outro. Até então, não havia uma cultura na música daqui de falar sobre os nossos ancestrais, os índios, os negros, os pobres, a história do Rio Grande. A maioria só versava sobre dançar baile e senhores da terra. É importante cantar as injustiças que vemos pelo mundo — e são muitas. A ambição e o dinheiro são coisas que afetam a alma do vivente. A gente sabe que as grandes guerras que estão no nosso mundo, gastando milhões e milhões em armas, poderiam alimentar o povo da Terra tranquilamente.
Nossa música missioneira ultrapassou as fronteiras do Rio Grande do Sul há muito tempo. Está pelo Brasil inteiro. Me orgulho dessa conquista, assim como do carinho que recebo, de pessoas velhinhas e até de crianças. Dou graças a Deus por esse dom, por essa alegria que tenho de ser muito bem recebido aonde vou.
Estou me sentindo bem. Tenho grandes apresentações para fazer. Vou continuar. Eu te aviso quando resolver parar de cantar. Posso estar “judiado da idade”, como diz uma música que lancei esses tempos, mas não vou parar de criar coisas.
É verdade que, às vezes, chego ao palco meio abichornado. Mas daí sinto aquele povo que sempre senti na minha vida. Aquele carinho e aquele aplauso. Saber que estão aplaudindo a música que faço, a causa que eu defendo, e aí eu cresço, cresço no palco. E canto tudo que tenho que cantar, e continuar cantando, se Deus quiser. Isso vem de dentro, dos ares, não sei de onde.