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Terra Indígena Guarita com incidência de duas doenças raras recebe equipe do Hospital de Clínicas

Viagem foi o primeiro passo para dar início a um projeto de pesquisa sobre galactosemia e albinismo na comunidade

Comunidade da Terra Indígena Guarita recebeu uma visita assistencial do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) em razão da incidência de duas doenças raras entre a população. (Fonte: HCPA / Divulgação)

Na Terra Indígena Guarita, localizada no noroeste do RS, há incidência de duas doenças raras entre a população de cerca de 7 mil kaingangs. Nove crianças foram diagnosticadas com galactosemia clássica pelo Serviço de Genética Médica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), considerado referência em doenças raras. Outras três, com albinismo.

A identificação de vários pacientes oriundos do mesmo local fez surgir a necessidade de atenção especial à população, que recebeu uma visita assistencial do hospital entre segunda (15) e quarta-feira (17).

A galactosemia é causada pela deficiência de uma enzima que quebra a galactose, molécula presente no leite, resultando em problemas metabólicos. Já o albinismo é uma condição genética que torna a pessoa mais suscetível a uma série de doenças, como câncer de pele e de mucosa oral e lesões na retina, causadas pela ausência de melanina – e, consequentemente, de pigmentação – no corpo.

A visita foi o primeiro passo para dar início a um projeto de pesquisa, que foi aprovado pela comunidade e protocolado, mas ainda precisa passar por análise. O trabalho envolve prestar assistência dentro da realidade local e captar informações, conforme a médica Lavínia Schuler-Faccini, professora do Serviço de Genética Médica do HCPA.

— As crianças que vêm da comunidade de lá têm dificuldades, são distâncias muito grandes, tem a questão da língua, nem todas falam português. A questão de entender o tratamento nos motivou a fazer projetos que são de investigação e ação. A equipe sai de dentro do hospital e da universidade, deixa de ser passiva para pessoas que viajam oito horas para chegar em Porto Alegre, ter 20 minutos, voltar para sua cidade sem a compreensão, sem o atendimento global, e passa a ir até a comunidade — pontua Lavínia.

O albinismo e a galactosemia são condições genéticas autossômicas recessivas – ou seja, a criança precisa receber a variante genética de ambos os progenitores, tendo duas cópias. Heterozigotos (pessoas que tem uma só cópia da variante) não possuem nenhuma característica da galactosemia ou do albinismo. Contudo, se procriarem com outra pessoa que também possui apenas uma cópia, seus filhos podem apresentar a condição. No projeto, os especialistas buscarão identificar qual é a variante genética que está na comunidade e a prevalência.

Saber quantos indivíduos com essas condições existem permitirá dar visibilidade, buscar respostas que expliquem por que isso acontece, verificar se a incidência é realmente maior e identificar a influência de causas genéticas ou ambientais. Ao mesmo tempo, ajudará nas condições de tratamento.

Nesta primeira visita, ao menos outras sete pessoas albinas foram identificadas na comunidade.

— Quando há uniões entre pessoas aparentadas, ou que estão isoladas, como nestas comunidades, estas condições recessivas tendem a estar mais aumentadas — explica Lavínia.

Os especialistas também querem ouvir as necessidades de saúde e as colocações dos indígenas para realizar uma construção conjunta. Além disso, estarão em contato com órgãos de saúde indígenas, treinando, transmitindo conhecimento e debatendo com os agentes de saúde. A ideia é que o paciente não precise se deslocar até Porto Alegre em função de situações mais simples.

A iniciativa de pesquisa dentro da terra é “bastante importante” para a comunidade, que tem mais de cem anos de demarcação, ressalta o cacique Valdonês Joaquim Kaingang. Os indígenas também querem buscar mais projetos na área da saúde, educação e cultura.

— A gente recebeu o pessoal da universidade com muito carinho. Lá na frente, vamos precisar da pesquisa que vai ser feita. E essa questão de ter o laboratório para fazer essa pesquisa vai ajudar muito aqui em Portela e Redentora. Tem uma demanda muito grande, na verdade, de atendimento aqui — destaca o cacique.

A TI Guarita possui mais de 8 mil indígenas, entre kaingangs e guaranis, com dois médicos para atender a todos, conforme Daniela Kaingang, auxiliar do cacique. Ela frisa a simbologia do trabalho por dar visibilidade e mostrar que existem diferenças dentro dos territórios que precisam ser analisadas.

— Esse trabalho é precursor, porque vem para realmente construir uma política de atendimento para essas pessoas, que possuem albinismo e outras doenças — afirma, destacando o desejo de buscar mais parcerias com universidades.

Tratamento
Ambas as condições são crônicas e têm tratamento, mas não cura. O tratamento é baseado em mudanças simples de rotina, mas que esbarram em questões culturais: a substituição do leite de vaca pelo de soja, no caso da galactosemia; e, para o albinismo, o uso de protetor solar e labial, hidratante especial e de óculos – sendo, este último, um cuidado que muitos pacientes da comunidade desconheciam. Os pesquisadores observaram, no entanto, que há grande dificuldade no acesso aos tratamentos e medicamentos.

Desta maneira, o propósito do projeto é ajudar a população, levando e disseminando informação com o auxílio da comunidade; elaborando estratégias que favoreçam a adesão aos tratamentos; e melhorando as condições de acesso.

— A gente está com muita expectativa, porque o que a gente consegue constatar e que causa muita preocupação é que nós temos muitos albinos aqui, eles não recebem kit de proteção solar, eles não recebem uma consulta de oftalmologista, muitas vezes ficam um ano para conseguir — relata Daniela, elogiando a disposição da equipe em ir até o território para conhecer essa realidade.

No caso da galactosemia, o tratamento é dietético e “barato”, de acordo com o geneticista Leonardo Medeiros. Contudo, por ser uma condição muito rara, um médico que atende um paciente próximo ao local onde mora pode nunca ter ouvido falar dela, salienta. Se não tratada, a galactosemia pode, inclusive, levar à morte. Entre os planos do projeto, que ainda precisam ser aprovados, está o de testar a população para avaliar se há pacientes não diagnosticados.

— É muito importante, se a gente identifica que uma população tem um aumento de uma determinada doença rara, que essa comunidade e os profissionais que a atendem tenham consciência disso, para que a condição possa ser rapidamente diagnosticada, porque o diagnóstico precoce é muito importante nessas condições — explica.

Além disso, Lavínia ressalta outra contribuição importante da missão: mostrar que, no caso do albinismo, mesmo sendo brancos, os pacientes continuam sendo membros da comunidade.

— Essa comunidade é muito acolhedora, foi sensacional essa parte, eles não fazem restrição ou preconceito, mas em outras comunidades pode acontecer isso. Nasce uma criança que a pele é diferente, muitas vezes eles pensam: “Olha, o pai não é esse”, ou não consegue ter essa identificação com os seus pares, porque se parecem diferentes — afirma Lavínia.

Desafios culturais
Para conseguir fornecer o melhor tratamento, os pesquisadores reconhecem que é preciso compreender mais sobre o local e a cultura da população – como a dieta, importante para tratar a galactosemia. Há também outros desafios, como a barreira linguística para algumas famílias, mas os pesquisadores já planejam como transmitir informações na língua local.

Os médicos analisarão, ainda, como a retirada da amamentação ao nascimento, medida importante no caso da galactosemia, poderá afetar, ou não, a relação da mãe com o filho – algo que pode variar de cultura para cultura. As intervenções também demandam cuidados em relação ao aconselhamento genético, já que alguns casais correm o risco de ter filhos com essas condições, em função da herança genética.

— Nós vamos passar esse aconselhamento genético de uma forma que seja benéfica, que esteja dando a informação para que isso empodere a população, esse casal, e não que cause algum tipo de estigma, de carregar aquilo consigo — complementa Medeiros.

A missão do HCPA – vinculada ao Instituto Nacional de Genética Médica Populacional (Inagemp) e ao Instituto Nacional de Doenças Raras (InRaras), ambos sediados no hospital – e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) é composta por cerca de 15 pessoas, entre professores, mestrandos, doutorandos, pós-doutores e bolsistas de Iniciação Científica. Entre eles, há a participação de indígenas, estudantes de medicina e outras áreas da saúde.

Estudante de Odontologia na UFRGS, Luana Kaingang integra o projeto e ajudou a fazer a interlocução entre os pesquisadores e a comunidade na língua kaingang. Ela sublinha a importância da participação dos universitários indígenas na academia e de sua formação como pesquisadores.

A jovem explica que os kaingang têm uma visão diferente sobre essas condições genéticas – os albinos, por exemplo, são vistos como um grupo especial de pessoas: os guerreiros da noite.

— A gente tem a sabedoria ancestral que a gente traz conosco, que a gente aprende com os nossos mais velhos, então, a partir disso, a gente pode mostrar que podemos estar unindo esses saberes. Eles (a equipe) souberam respeitar as nossas diferenças, ouvir, procurar a nós para saber o que a gente quer, na verdade, então isso é um pontapé inicial, é o principal — destaca.

*Fonte: Fernanda Polo – GZH