Historiador e jornalista é um dos maiores pesquisadores sobre o tema no Brasil
Bento Manoel, na primeira vez em que esteve do lado imperial, capturou o presidente da província, Antero de Brito, numa verdadeira operação de sequestro à moda do século XX e do começo deste século XXI.
Com essa presa valiosa em mãos, passou novamente para o lado farroupilha, onde foi recebido sem maiores constrangimentos. O refém foi trocado por prisioneiros.
A principal forma de operação bélica dos farroupilhas, ainda mais no final da guerra civil, foi a guerra de guerrilha. O Império, obviamente, era autoritário, despótico e cruel, o que se confirmava na manutenção do escravismo. Só que os farroupilhas, nunca é demais repetir, tampouco aboliram a escravidão.
Também nunca é demais repetir que o projeto da Constituição da República Rio-Grandense estabelecia (artigo 6º, parágrafo 1º) como cidadãos “todos os homens livres nascidos no território da República”.
Se aparentemente não discriminava raça, previa homens não-livres, ou seja, escravos. Por coincidência histórica, não mais do que isso, os escravos eram negros.
Moacyr Flores destaca com acerto que a república farroupilha, sendo liberal, não podia abolir a escravidão para não interferir no sagrado direito de propriedade.
Não se pode negar que os farroupilhas hierarquizavam os direitos segundo um padrão humanista. A sagrada propriedade acima de tudo e de todos.
O sequestro do presidente Antero de Brito, em 23 de março de 1837, resultou em abertura de processo, em 21 de abril do mesmo ano, contra Bento Manoel na justiça comum de Porto Alegre, tendo sido pronunciado junto com seu filho, Sebastião Ribeiro, e mais quatro pessoas por “crime de sedição, e de rebelião, e como cúmplices de roubo e cárcere privado” (Araripe, 1986, p. 73).
Nada de novo no front do direito. Exatamente o mesmo que ocorre com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia. Antero de Brito foi uma Ingrid Betancourt do século XIX. Ou um Álvaro Oribe que tivesse posto o pé na selva. Diz Araripe com incrível atualidade: “O presidente Antero de Brito levava consigo a quantia de mais de 7.000$000 contos de réis, que foi apreendida com o prisioneiro. Esta quantia, pertencente aos cofres nacionais, deu azo à qualificação de roubo na pronúncia judicial” (1986, p. 73).
Em 9 de janeiro de 1838, em Viamão, Antero de Brito foi trocado pelo coronel farrapo Sarmento Mena.
As Farc não teriam feito melhor. A operação foi altamente bem-sucedida.
A tradição brasileira para o arquivamento dos processos é antiga e passou pelos episódios da Revolução Farroupilha. O processo contra Bento Manoel, segundo Araripe, “nenhum êxito real produziu”, tendo sido “posteriormente inutilizado pela anistia concedida a todos os indivíduos nele comprometidos” (1986, p. 73).
Pode-se, contudo, ler, nos quatro volumes das “Notas sobre o processo dos farrapos”, de Aurélio Porto, alguns milhares de páginas sobre a pendenga judicial que envolveu os rebelados, com testemunhas relatando manobras de incitação à sublevação de escravos pertencentes aos adversários no sentido de arrebanhar efetivos para a luta. Ou seja, a quebra de ordem institucional pelos rebeldes foi enfrentada pelas armas e pelos meios jurídicos. Reagiu-se, portanto, na época como se faria hoje, pela repressão legal e pela justiça constituída.
Passados mais de 170 anos do fim da Revolução Farroupilha, procuradores do Ministério Público propuseram extinguir o MST por considerar que ele atenta contra o Estado de Direito. Esse tipo de paralelo peca por anacronismo, mas não deixa de ser interessante.
O MST, a exemplo dos farrapos, entende que os poderes constituídos não são sensíveis às necessidades básicas da gente do campo que representa. Os farrapos sustentaram a guerra civil contra o poder central durante o “decênio glorioso” por razões semelhantes. Entendiam que o Império era tirânico e insensível aos interesses deles. Queriam pagar menos impostos e ter melhores condições de produção. A diferença é que os farrapos eram fazendeiros.
O Brasil era uma monarquia constitucional. Os farrapos atentaram contra o Estado de Direito. Foram processados. Os procuradores do século XXI deviam talvez propor a proibição dos festejos da Revolução Farroupilha para evitar maus exemplos de insubordinação e rebeldia.
O MST invade propriedades alheias e talvez sonhe com outro regime ou sistema econômico. Os farrapos declararam uma república e separaram-se do Brasil. Boa parte da população do Estado não os apoiou. Eles passaram a dominar toda uma parte do território do Rio Grande.
Mais ou menos como as Farc. Deram-se o direito de invadir as terras dos “dissidentes”, de arrendá-las a quem quisessem e de apossar-se dos demais bens, vendendo gado e cavalos. O decreto de 11 de novembro de 1836 determinava o sequestro, o arremate em hasta pública ou a venda de tudo que pertencesse aos “súditos do Brasil”, inclusive mercadorias, prédios, gados, animais, muares, cavalos, escravos, móveis, embarcações, etc.
“Súditos do Brasil”, fixava o decreto, eram todos os inimigos, ou seja, os que não estivessem de acordo com os ideais farrapos e a eles se opusessem. O decreto de 5 de abril de 1837 confirmou o anterior.
Em 1838, outros atos continuaram o processo.
Os farrapos achavam o sistema injusto e impiedoso. O MST também. A cisão entre os farrapos deu-se principalmente por causa disso. Uma facção, liderada por Antônio Vicente da Fontoura, estava farta do desrespeito à propriedade. Houve saque, corrupção e arrendamento de cobiçadas propriedades de dissidentes a bons amigos.
A documentação sobre isso é farta e está disponível. Basta ver a carta 185 da “Coletânea de Documentos de Bento Gonçalves” sobre arrendamento de propriedade de inimigo. Ou (Coleção Varela 6182) a já citada carta em que Neto refere-se a uma “espantosa ladroeira” praticada por aliados, com nome e sobrenome, “com permissão para se estabelecerem na fazenda outrora do finado José Antonio de Freitas”.
A maior dificuldade para se chegar à paz consistiu em saber quem indenizaria os proprietários lesados.
Os farrapos conseguiram transferir a conta para o império. Ficaram anos ameaçando não entregar os negros que os imperiais exigiam e espichando uma guerra de guerrilhas que não ganhariam para que o poder central assumisse o que chamavam de “dívida externa”, pois com a paz as demandas judiciais de indenização seriam muitas e inevitáveis. Era uma questão de sobrevivência econômica.
Cada época com os seus valores. Aquilo que era válido no século XIX não parece legítimo hoje? Sofisma.
O poder legal da época e os proprietários lesados pensavam exatamente com os de hoje em situação equivalente. Chegamos ao paradoxo: o Rio Grande do Sul que tanto condena o MST festeja uma revolução cujas práticas e motivações eram equivalentes às do MST.
Se o MST encobre um sonho comunista, os farrapos tornaram-se separatistas ou realizaram uma separação encoberta desde o começo do movimento e ardentemente desejada por algumas das suas facções.
Qual desses é o maior crime? Do ponto de vista do Estado de Direito os dois são equivalentes. Nos dois casos, a violência é o método escolhido para atingir objetivos e superar “injustiças”. Nos dois casos igualmente a ruptura com o Estado de Direito aparece como solução. Se o MST sonha em mudar o modo de produção, os farrapos queriam alterar a forma de governo. Na época, essa parecia ser a grande saída para a liberdade.
Antônio Vicente da Fontoura, em 27 de junho de 1844, anotou esta dolorosa reflexão: “Nove anos têm corrido na luta sangrenta, sem que mais sisudos tenhamos reconhecido que a escolha da forma de governo não vale o sacrifício de uma só vida, quanto mais que a mestra experiência nos há mostrado, desde os primeiros dias da república, que um governo inda mais iníquo que o do Rio de Janeiro foi o prêmio de tão desinteressados e árduos sacrifícios”.
Naquela época, como se fosse hoje, Fontoura ironizava dizendo que nem na melhor universidade de Paris aprenderia tanto sobre a alma humana. E, claro, sobre as utopias salvadoras dos homens. O saldo, descrito por ele, em 3 de julho de 1844, refugiado com a república ambulante na Banda Oriental, era terrível:
“Hoje não mudamos de campo por causa da chuva, pois agora os Farrapos que em 1838 ameaçavam o desmembramento do império ou a mudança geral da sua forma de governo, estão reduzidos a contentarem-se com o acampamento em alguma grota que tenha bastante lenha, para estarem ao abrigo dos ventos e com o calor do fogo suprirem a roupa que lhes falta. Malditos sejam o Bambá, Almeida e Mattos, que a tal estado nos reduziram!”
Os farrapos viraram acampados, como os do MST, embora seus chefes fossem latifundiários.
Eram descamisados, manipulados por líderes ideológicos, errantes, roubando, saqueando e definhando.
Fonte: (Silva, Juremir Machado. História regional da infâmia: o destino dos negros farrapos e outras iniquidades brasileiras. Ou como se produzem os imaginários. L&PM, 2010).