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Nilce morre, sem justiça

Presa e brutalmente torturada por meses durante a ditadura cívico-militar, a ativista dos direitos humanos, bacharel em Física pela USP, foi sepultada na tarde desta terça-feira, 22, na capital gaúcha

 

Por Stela Pastore / Publicado em 22 de fevereiro de 2022

 

Sua luta democrática foi reconhecida pelo Estado mais de 40 anos depois. “O Estado brasileiro reconhece o seu direito de resistência contra um regime autoritário em prol da luta pelo restabelecimento das liberdades públicas e da democracia. Para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça – 26 de outubro de 2012”, atestou o documento entregue a ela. Foto: Igor Sperotto Nilce Azevedo Cardoso, 77 anos, morreu sem ver condenados seus torturadores. Presa e brutalmente torturada por meses durante a ditadura cívico-militar, a ativista dos direitos humanos, bacharel em Física pela USP, psicopedagoga, foi sepultada na tarde desta terça-feira, 22, na capital gaúcha. Ela deixa um legado de resistência, convicção inabalável no humanismo e um exemplo de fraternidade e vitalidade contagiantes. Centenas de depoimentos inundaram as redes sociais descrevendo as vivências inspiradoras para inumeráveis amigos e companheiros. “Fará muita falta. Mulher forte nas atitudes, nos posicionamentos, no verbo, mas frágil de saúde, pois as torturas do tempo da ditadura militar deixaram muitas sequelas. Contudo era doce, suave lutadora, perseverante das causas sociais. Amava o Brasil e o povo brasileiro”, declarou a funcionária pública Isabel Almeida, amiga de Nilce há muitos anos. “Professora preocupada e dedicada aos alunos com dificuldades de aprendizagem. Tentava compreender os outros, via dignidade e humanidade nos outros. Apesar da violência e agressão que sofreu dos agentes da repressão, não se tornou uma pessoa amarga e dura”.

“Ela era um ser iluminado”

Assim terminava o comunicado de falecimento feito ontem à noite pelos filhos Paulo e Semíramis nos perfis da mãe e avó de quatro netos, com os quais dedicadamente convivia. Paulista de Orlândia, filha de professores, sete irmãos, Nilce queria ser bailarina. Ao ingressar na USP em 1964 em pleno golpe, iniciou seu ativismo e nunca mais parou. Integrou a Juventude Universitária Católica (JUC) e a seguir a Ação Popular (AP). Na clandestinidade, veio para Porto Alegre, em 1969. Sequestrada em uma parada de ônibus em 1972, foi violentamente agredida por cinco meses e meio, tanto a mando do delegado do Departamento de Ordem e Política Social (Dops), Pedro Seeling, quanto por Carlos Brilhante Ustra, ex-chefe do Doi-Codi. Tinha prótese no pescoço e foi uma das presas mais fortemente torturadas.

Crimes impunes

“É inimaginável o que a gente passa. Eles queimaram todo meu útero. Eu fui perdendo a razão, perdendo o jeito até de ser humano. Eu nua ali, na frente de todo mundo, sempre sendo queimada. Perdi muito sangue, quebrei muitos ossos e entrei em coma por oito dias. Eu vim do coma, fiquei ali na tortura, junto com as outras. Passei por algumas coisas muito terríveis em termos emocionais”, relatou em julho passado na Fundação Ecarta, em uma das poucas atividades das quais participou presencialmente na pandemia. Ela integrou o diálogo promovido pela Galeria Ecarta com vários outros presos políticos, durante a exposição Território Provisório, que mostrou os locais vinculados ao regime autoritário em Porto Alegre, mapeados pela pesquisadora Manoela Cavalinho. Em dezembro do ano passado diagnosticou tuberculose, ficou isolada e iniciou um pesado tratamento. Fraca, teve sucessivas quedas e, na última semana, fraturou costelas e foi intubada. Dessa vez seu combativo corpo não resistiu. Coragem e lealdade No encontro na Fundação Ecarta, contou também sobre seu aprendizado com trabalhadoras nos cinco anos da sua marcada atuação clandestina no movimento operário. Nunca entregou um único nome ou informação que comprometesse companheiros de jornada. Sonhou com todos os horrores até morrer, mas com um ânimo contagiante, nunca mais parou de denunciar, contar o que viu e passou. Estava sempre com um projeto novo, um envolvimento, colocando-se colaborativa contra a opressão, a injustiça e a pobreza. Trazer suas memórias e dar seu testemunho foi seu caminho de resgate para se reencontrar frente à violência de Estado da qual foi vítima.

Dedicou o restante da sua vida a resgatar a memória.

Atuava no projeto Clínica do Testemunho e integrava o projeto Museu de Histórias (in) Possíveis, da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, além da sua militância no Partido dos Trabalhadores. Impunidade persiste “Tem que se fazer justiça para que se possa continuar, pela luta por memória, pela verdade. Tem que construir a história desse país junto com a justiça e a memória. Se não, vem um cara que diz que a violência é que é prioridade, o símbolo é a arminha na mãozinha até das crianças pequenas, acham que está certo torturar, não sabe porque não mataram todos. São coisas que são faladas, e ainda tem 30% que apoiam piamente esse cara. Não é possível, sem fazer justiça e sem que eles saibam o que fizeram. O resto do mundo sabe, todo mundo gritando, só que aqui dentro não ecoa”, disse em entrevista ao Brasil de Fato em 2019. Sua luta democrática foi reconhecida pelo Estado mais de 40 anos depois. “O Estado brasileiro reconhece o seu direito de resistência contra um regime autoritário em prol da luta pelo restabelecimento das liberdades públicas e da democracia. Para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça – 26 de outubro de 2012”, atestou o documento entregue a ela.

 

 

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