Ficções e documentários na disputa retratam inquietude sobre a realidade ‘Honeyland’, da Macedônia do Norte, é favorito na categoria documentário (Apolo Media/Divulgação)
A inclusão de Democracia em vertigem, de Petra Costa, na disputa pelo Oscar de documentário traz uma boa nova para o Brasil. Se há chances reais de vencer, não se sabe, mas é um filme que trata, em termos pessoais e de modo criativo, de um tema mais do que urgente: estudando o "modelo" brasileiro, aponta para a fragilização das democracias no mundo atual. Para quem não o viu ainda, Petra acompanha o processo histórico recente, das manifestações de 2013 à destituição de Dilma Rousseff, até seus desdobramentos mais dramáticos, como a prisão de Lula e a ascensão da extrema-direita com a eleição de Bolsonaro. Está disponível na Netflix. Pode vencer. No entanto, a concorrência é forte.
Enfrenta dois filmes sobre a guerra da Síria, For Zama e The cave, além do interessantíssimo American factory (sobre a presença chinesa na economia norte-americana) e, para mim o favorito, Honeyland, da Macedônia do Norte. Exibido na Mostra de São Paulo, é um retrato pungente da mulher apicultora que vive nas montanhas do seu país, isolada e em companhia da mãe doente. A segunda notícia de interesse para o cinema do Brasil é a presença em três categorias de Dois papas, dirigido por Fernando Meirelles (de Cidade de Deus). Não é uma produção nacional, mas leva a marca de autoria de um dos nossos cineastas mais competentes, que estava há algum tempo sem lançar novo filme. Dois papas concorre em roteiro adaptado, ator (Jonathan Pryce) e Anthony Hopkins (coadjuvante). O filme fala do diálogo entre dois temperamentos opostos da igreja católica: o então papa Bento XVI (Hopkins), que viria a renunciar, e o futuro papa Francisco (Pryce). Num mundo conturbado, polarizado e intolerante, é a aposta na possibilidade do diálogo e da pacificação em torno de um objetivo comum. Muito bem dirigido. No contexto geral da premiação, destaca-se Coringa, com o maior número de indicações, 11 no total. Seguido por três concorrentes em seus calcanhares, Era uma vez em Hollywood, O irlandês e 1917 com 10 indicações cada um. Esses quatro mais indicados disputam a estatueta principal – a de melhor filme – competindo com outros cinco longas: Ford vs. Ferrari, Jojo Rabbit, Adoráveis mulheres, História de um casamento e Parasita.
A nota importante, aqui, é a presença do coreano Parasita entre os concorrentes a melhor filme. É das produções mais originais e de impacto do ano e favorito em outra categoria na qual está indicado, a de filme internacional. Nesta concorre com Corpus Christi (Polônia), Honeyland (Macedônia do Norte), Les misérables (França) e Dor e glória (Espanha). Parasita pode ser favorito, mas a disputa aqui é renhida. Honeyland é uma maravilha. Les misérables é um filme fortíssimo sobre a questão social na França – foi matéria de capa nos Cahiers du Cinéma de novembro de 2019. E Dor e glória é um magnífico balanço de vida e trajetória artística de ninguém menos que Pedro Almodóvar, feito por ele mesmo e usando o grande Antonio Banderas como seu alter ego. A disputa por melhor filme parece também a mais equilibrada dos últimos anos. Coringa, de Todd Philips, tem o mérito de tomar o personagem de um vilão clássico dos blockbusters e transformá-lo em ícone do profundo mal-estar social que ronda o mundo, no qual as injustiças promovem o ressentimento e a violência. Faz o retrato impiedoso de um planeta autofágico, que se recusa a se ver dessa maneira.
Também Parasita se debruça sobre a questão das disparidades entre as pessoas, abrindo outra visão para o problema da problemática coabitação de classes sociais. O irlandês, volta de Martin Scorsese ao mundo da máfia, é magnificamente bem dirigido e traz três veteranos em estado de graça: Robert De Niro, Al Pacino e Joe Pesci. O drama de guerra de Sam Mendes, 1917, vem correndo por fora com velocidade espantosa, a ponto de despontar como possível vencedor por sua proeza técnica de um falso plano-sequência que abarca a história inteira. Também Quentin Tarantino chega bem cotado com sua criativa revisão histórica de Era uma vez em Hollywood, no qual coloca o mundo do cinema como personagem principal. Com concorrentes tão fortes, bons filmes como Adoráveis mulheres e História de um casamento, além de Ford vs Ferrari, ficam em segundo plano, como legítimos azarões. Martin Scorsese, Todd Philips, Sam Mendes, Quentin Tarantino e Bong Joon-ho lutam pela estatueta de melhor diretor. Disputa equilibrada. Pode ser Sam Mendes pela proeza técnica, Scorsese pela consistência, Tarantino pela fluidez narrativa, Todd Philips pela força, Bong Joon-ho pela precisão. Em tese, o vencedor deve fazer par com o ganhador da categoria principal.
Afinal, o melhor filme é o mais bem dirigido, não é? No entanto, nem sempre é assim. O prêmio de melhor ator deve ir para Joaquin Phoenix, por Coringa, pois é mesmo uma atuação mais impressionante. E o de atriz não deve escapar de Renée Zellweger com sua caracterização profunda e comovente de Judy Garland em Judy. Dificilmente o Oscar deixa de premiar imersão tão completa em uma personagem, como é o caso. No geral, este é um Oscar de ótimo nível, com alguns filmes fora de série disputando os troféus principais e chamando a atenção para os graves problemas sociais contemporâneos.
Agência Estado/dom total///