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Agrotóxicos: vale tudo em nome desburocratização?

Focado em desburocratizar, o projeto – ‘pacote veneno’ – desconsidera a periculosidade inerente dos agrotóxicos e a gravidade da poluição causada por tais produtos químicos.

 

DOM ESPECIAL (wuzefe/Pixabay)

 

Por Leonardo Cordeiro de Gusmão*

Com o advento da Revolução Verde, deflagrada após a II Guerra Mundial, os agrotóxicos passaram a ser intensamente utilizados nas monoculturas cultivadas em largas escalas, tendo como principal objetivo o combate à fome que assolava o mundo à época, inclusive na Europa.

Algum tempo depois, a comunidade científica chegou ao consenso de que tais produtos químicos são inerentemente perigosos, representando uma ameaça ao meio ambiente e também à saúde e vida humana, tendo em vista os riscos de intoxicação aguda (se manifesta em pouco tempo após a exposição) e crônica (se manifesta algum tempo depois à exposição). Por tal motivo foram estabelecidos parâmetros de segurança diversos – em relação à quantidade de resíduos que podem estar presentes na água e nos alimentos, além de níveis seguros de exposição humana, a fim de evitar quadros de intoxicação.

Entretanto, tais parâmetros não são totalmente confiáveis, dentre outros fatores, porque são fixados a partir da análise de um único ingrediente ativo – agente químico que confere eficácia ao agrotóxico – isoladamente analisado. Sua definição ocorre sem a consideração da capacidade bioacumulativa de tais substâncias e, tampouco, do efeito cocktail resultante da interação sinérgica dos resíduos dos diversos tipos de agrotóxicos que são efetivamente encontrados tanto no meio abiótico quanto no meio biótico.

Pesquisas recentes revelam, por exemplo, a presença de resíduos de diversos tipos de agrotóxicos no solo de estados brasileiros, e também nas águas que abastecem vários municípios. Em outra pesquisa, realizada a partir de amostras de mel de abelha coletadas em diversas regiões do mundo, foi revelada a presença de resíduos de mais de um tipo de agrotóxico em 45% dessas amostras. Por sua vez, em estudo realizado no município de Lucas do Rio Verde/MT, verificou-se a presença de resíduos de mais de um tipo de agrotóxico em 85% das amostras de leite materno.

Diante dessa periculosidade inerente dos agrotóxicos e da persistência dos riscos de intoxicação aguda e crônica em razão da incerteza dos parâmetros de segurança estipulados, faz-se imprescindível a aplicação de medidas de precaução visando proteger o meio ambiente e evitar quadros de intoxicação aguda e crônica. Oportuno destacar a necessidade de se realizar uma aplicação prudente, isto é, ponderada, do princípio da precaução, evitando o medo paralisante que impede o progresso e também a confiança temerária que ameaça o meio ambiente e a dignidade das atuais e futuras gerações.

Sob tal contexto, revela-se razoável o desenvolvimento de programas de educação ambiental para o trabalhador rural, assegurando-lhe também o acesso facilitado às informações sobre os riscos associados aos agrotóxicos. Outra medida prudente consiste na proibição da pulverização aérea de agrotóxicos, uma vez que tal técnica acarreta na dispersão de seus resíduos para localidades indesejadas. Ao considerar que o comportamento do consumidor tem capacidade de influenciar no modelo produtivo, também se faz necessário assegurar-lhe, em especial no varejo e no atacado, acesso ostensivo à informação sobre a presença de resíduos de agrotóxicos nos diversos alimentos que os contêm – não apenas frutas, verduras e legumes, mas também leite, carnes, papinhas de bebê etc. –, além dos riscos relacionados.

Também seria prudente o estabelecimento e a execução de políticas visando reduzir progressivamente o uso de agrotóxicos no país e, paralelamente, fomentar a transição agroecológica e a produção orgânica – ganha relevância, nesse sentido, o Projeto de Lei 6670/16, conhecido como PNARA. De resto, em caso de dúvida científica razoável acerca da existência de níveis seguros de exposição humana aos resíduos de um determinado tipo de agrotóxico – como aqueles considerados potencialmente cancerígenos por parcela considerável da comunidade científica –, a imediata proibição de seu registro e uso no país se torna uma medida precaucional indispensável.

Ao propor a transição agroecológica e o fomento à produção orgânica, concomitantemente à redução progressiva do uso de agrotóxicos no país, não se está afirmando que tais produtos químicos – juntamente às demais técnicas de produção resultantes da Revolução Verde – não exerceram, historicamente, sua função social. Contudo, apesar do sucesso produtivo e econômico do modelo agrícola sedimentado com a Revolução Verde, não houve êxito em seu principal objetivo, consistente no combate aos alarmantes níveis de fome verificados ao redor do mundo.

Conforme enfatizado pela ONU, o problema da fome não pode ser solucionado apenas com o aumento da produção de alimentos, sendo imprescindível assegurar às pessoas renda suficiente para adquiri-los ou o acesso a terras para cultivá-los. Far-se-ia oportuna, também, a criação de políticas públicas destinadas a reduzir o desperdício de alimentos, que segundo pesquisa recente, em 2017 chegou a 1,6 bilhões de toneladas em todo o mundo, o equivalente a 1,2 trilhões de dólares. No Brasil, por sua vez, a Associação Brasileira de Supermercados (ABRAS), revela que em 2017 houve o desperdício de R$ 3,9 bilhões em frutas, verduras, legumes e produtos das sessões de padaria, peixaria e açougue.

Convém ressaltar que o incentivo à produção, comercialização e o uso de tais produtos químicos, trata-se de uma das raras políticas públicas absorvidas pelos diversos grupos políticos que historicamente ocuparam o poder no país. Não por acaso, desde 2008 o Brasil ocupa o posto de maior consumidor de agrotóxicos em todo o mundo. Dentre essas medidas históricas, pode-se citar o Sistema Nacional de Crédito Rural, de 1965, que era condicionado à compra de agrotóxicos. Em 1975, por sua vez, houve a criação do parque brasileiro de produção de agrotóxicos em razão da Política Nacional de Desenvolvimento Agrícola.

Em relação à legislação tributária, muito se deixa de arrecadar por incentivos à produção e comercialização de agrotóxicos. Confere-se, por exemplo, a possibilidade de redução da base de cálculo de ICMS (Convênio Confaz 100/97) – há uma diminuição do valor sobre o qual será calculado o imposto. Além disso, estipula-se alíquota zero para as contribuições sociais PIS/PASEP e COFINS (Decreto 5.630/05), e também para o imposto sobre produtos industrializados (Decretos 7.760/11 e 8.950/16), resultando numa tributação sem qualquer expressividade econômica.

Verifica-se, portanto, a persistência dos históricos incentivos à produção e comercialização do uso de agrotóxicos no país, apesar da necessidade da redução progressiva do uso de tais produtos químicos, na pretensão de avançar em direção do Objetivo nº 02 da Agenda 2030 – acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentável. Observa-se, aliás, uma tendência de afrouxamento – desburocratização – das normas legais destinadas ao controle dos riscos associados à produção, comercialização e utilização desses produtos.

Recentemente, por meio da Lei 12.873/13 e do Decreto 8.133/13, passou a ser autorizado o uso emergencial de agrotóxicos no país em caso de necessidade extraordinária temporária, desde que o agrotóxico já tenha seu uso autorizado em pelo menos três países membros da Organização da Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Importante ressaltar, no entanto, que o mais forte movimento político destinado a facilitar a produção, comercialização e utilização de agrotóxicos no país, está representado pelo Projeto de Lei 6.299/02, por meio do qual se pretende revogar a Lei 7.802/89, que atualmente regulamenta o registro e a utilização de tais produtos químicos no país.

O referido projeto de lei tem como principal objetivo a desburocratização dos procedimentos relacionados ao registro, a comercialização e utilização de agrotóxicos utilizados no Brasil e, também, daqueles produzidos no país e destinados unicamente à exportação. Focado em desburocratizar, o projeto desconsidera a periculosidade inerente dos agrotóxicos e a gravidade da poluição causada por tais produtos químicos, além de negligenciar a falibilidade dos parâmetros de segurança fixados a fim de evitar quadros de intoxicação aguda ou crônica. Por facilitar a produção, comercialização e utilização de produtos extremamente nocivos ao meio ambiente e à saúde humana, o referido projeto é chamado por muitos pelo nome de “pacote veneno”.

São diversas as alterações legislativas propostas pelo “pacote veneno”, tais como: a) supressão do termo “agrotóxico”, passando a utilizar os termos “produto fitossanitário ou de controle ambiental”; b) expressa proibição à criação de leis estaduais mais restritivas ao registro e à comercialização de agrotóxicos, salvo em razão de peculiaridades regionais cientificamente comprovadas; c) concentração de atribuições no Ministério da Agricultura em relação aos agrotóxicos utilizados na produção agrícola, com a delimitação de um papel meramente consultivo à ANVISA e ao IBAMA; d) proibição do registro e uso de agrotóxicos que produzam riscos inaceitáveis, sem esclarecer hipóteses em que isso ocorreria, tal como a legislação atual faz em relação àqueles potencialmente cancerígenos em seres humanos; e) registro temporário automático de agrotóxico, caso a autoridade competente não conclua sua análise no prazo legalmente estipulado; f) registro temporário de agrotóxicos com uso autorizado em pelo menos três países membros da OCDE, independentemente de urgência; g) dispensa de estudos e do registro de agrotóxicos produzidos no país e destinados exclusivamente à exportação; etc.

Diante do cenário exposto, pode-se concluir que a desburocratização almejada por meio do Projeto de Lei nº 6.922/02, tem como foco conferir vantagens não razoáveis à indústria de agrotóxicos e ao agronegócio, por não estar condizente com o desenvolvimento sustentável, que exige um equilíbrio circunstancial entre interesses sociais, ambientais e econômicos. Se aprovado o “pacote veneno”, observar-se-á um retrocesso socioambiental inconstitucional, em prejuízo ao equilíbrio ambiental e à dignidade das atuais e futuras gerações.

• Estudo do mel de abelha:

https://science.sciencemag.org/content/358/6359/109/tab-pdf

• Estudo do leite materno:

https://www.ufmt.br/ppgsc/arquivos/857ae0a5ab2be9135cd279c8ad4d4e61.pdf

• Desperdício de alimentos no mundo:

https://foodnationdenmark.dk/wp-content/uploads/2018/10/FINAL_BCG-Tackling-the-1.6-Billion-Ton-Food-Waste-Crisis-Aug-2018-1.pdf

• Desperdício de alimentos em supermercados brasileiros:

http://www.abras.com.br/clipping.php?area=20&clipping=65631

• Agrotóxicos nos solos:

https://gauchazh.clicrbs.com.br/ambiente/noticia/2019/03/solo-brasileiro-contem-mistura-complexa-de-agrotoxicos-aponta-estudo-realizado-em-rio-grande-cjtis3hw403th01k0cmqlyrwi.html

• Agrotóxicos nas águas:

https://apublica.org/2019/04/coquetel-com-27-agrotoxicos-foi-achado-na-agua-de-1-em-cada-4-municipios-consulte-o-seu/?fbclid=IwAR2Qd8jrgr4ZCd6bdpB2yN0cVAr__JPDCFhOMNMDk4EIv0kQEjkR-3o2MVY

*Mestre em Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável pela Escola Superior Dom Hélder Câmara. Pós-Graduado em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas. Advogado e Presidente da Comissão de Direito Ambiental da 43ª Subseção da OAB/MG.

 

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