Por Raul Ellwanger
Se a palavra milonga tem raiz africana para dizer “reunião de muitas palavras”, fizemos jus nesta letra a isso, com versos bem amplos e prolixos. Ocorre também que o próprio gênero milonga tem estilos e modos de expressão bastante abertos, desde a milonga campeira, que é lenta, parca e meditativa, até a milonga arrabalera, com ritmo e orquestração vivazes, menos sugestiva na parte literária. Já a milonga “limpa banco” rio-grandense anima os bailes sul-brasileiros, sendo seu objetivo que ninguém deixe de dançar. Pode designar também um evento social, como a reunião bailável dos bairros e subúrbios platinos, pode aparecer na faceta baiana da obra de Vinícius e ser no Brasil gíria corrente na forma “mirongueiro enrolador”. A fecunda milonga ainda nos sugere a interrogação: se por trás da milonga está a habanera, quem está atrás do baião?
Com Jerônimo Jardim, trabalhamos com muita fluidez e entendimento. Sendo letrista e compositor de excelência, laureado em muitos festivais, em sua parceria resultou sempre cômodo abrir uma ideia inicial e avançar na urdidura desse misterioso conjunto chamado “canção”. Fosse com um verso esboçado, fosse com uma linha melódica tentativa, pudemos sempre concretizar canções com facilidade, somando os atributos pessoais em benefício da música.
Sendo fronteiriço, Jerônimo logo empalmou com a ideia de um tema latino-americanista e nos pusemos a mostrar alguns lados da milonga, entre o sorriso e a tristeza, a tradição e o “tempo novo”, o verso e a pajada. As lutas pela independência, a diversão, a alfinetada nos padres, a morte com glória, a paz tão desejada, são cenas que vão pintando este painel, gravado num andamento bem mexido. Não por acaso foi adotada com entusiasmo pelo missioneiro Cenair Maicá, que realizou a primeira gravação desta Milonga no disco Caminhos, ao lado de outra parceria com Jerônimo, a chacarera Companheira liberdade. Na gravação em castelhano, tive a honra de tocar com Dom Domingo Cura e Peteco Carbajal, titulares do selecionado de grandes músicos.
Quase como uma genética musical e familiar, com Jerônimo descobrimos que nossos maiores já tocavam milonga. Jerônimo guardou na memória e por fim gravou uma pequena e sabia cadência de milonga em Mi menor tocada por seu pai nas cordas primas de algum violão galponeiro. Já meu avô materno Moura fazia algo parecido com apenas duas posições, com o detalhe de que em cada uma das mãos usava apenas dois dedos, em consequência gerando, com as cordas soltas, erros e tensões surpreendentes.
O musicólogo uruguaio Don Lauro Ayestarán fala de um país musical referindo-se ao tripé Uruguai, províncias do leste argentino e Rio Grande do Sul, com uma unidade que na minha opinião tem seu melhor exemplo na milonga, além da chamarra e do xote. Fecundados em fontes africanas e andaluzas, os frutos desta árvore generosa permitem a Atahualpa Yupanqui dizer que “cada pueblo tiene su milonga”!
Milonga
Raul Ellwanger – Jerônimo Jardim
Milonga se canta rindo
Se canta triste também
Milonga do amor benvindo
Milonga se o amor não vem
Milonga sai de improviso
Sai também de verso feito
Se troca por um sorriso
Pra livrar mágoa do peito.
Milonga é prosa de amigo
Milonga é fala do povo
Lembrança de um tempo antigo
Desejo de um tempo novo
Milonga é coisa mui séria
É também divertimento
Só não canta o seu vigário
Consagrando o calix bento
Refrão
Milonga é flor da fronteira
Senhora, moça e menina
Milonga linda bandeira
É o som da América Latina
Agreste fruto campeiro
Que doce chega à cidade
Milonga canto guerreiro
Amante da liberdade
Milonga é canto que jaz
Com quem peleou pela terra
É brado heroico de guerra
É canto amigo de paz
Canção deste continente
Tem até milonga gringa
Mas de cara a gente sente
A danada da catinga