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‘Mídia trata assuntos externos com ignorância’

Por Tereza Cruvinel, 247 – O ex-chanceler brasileiro Celso Amorim chefiou a missão da OEA (Organização dos Estados Americanos) que acompanhou e supervisionou as eleições gerais no Haiti, um passo importante para a consolidação da democracia no país do Caribe. Estranhamente, a imprensa brasileira praticamente ignorou as eleições haitianas, embora o Brasil, desde a intervenção da ONU em 2004, e sobretudo a partir do terremoto de 2011, ali venha desempenhando importante papel. Nas poucas referências ao fato, a atuação do ex-chanceler brasileiro não foi sequer mencionada, diferentemente do que fariam veículos de outro país em relação a um nacional que ocupasse tal posto. Amorim foi chanceler de Lula por oito anos e comandou uma guinada na política externa que garantiu uma projeção internacional sem precedentes ao Brasil. Nesta entrevista ao 247, ele diz não poder acreditar nesta explicação para o tratamento dado ao pleito no Haiti e à sua atuação. Prefere atribuí-lo à ignorância e à preguiça da mídia brasileira no trato de assuntos externos.

O processo eleitoral haitiano complicou-se no final, com denúncias de fraudes no primeiro turno de 25 de outubro, o que levou um dos dois candidatos presidenciais mais votados, o oposicionista Jude Celestin a desistir de concorrer ao segundo turno previsto para 24 de janeiro. O Conselho Eleitoral cancelou o pleito final e houve protestos contra o presidente Michel Martelly, que terá de deixar o cargo no próximo dia 7. Grandes são as dúvidas sobre o futuro: quem governará até o segundo turno? Quando ele ocorrerá? Serão os haitianos capazes de encontrar uma solução? Nesta entrevista, Amorim fala sobre este e outros assuntos.

247 – O senhor chefiou a missão da OEA que acompanhou as eleições gerais da semana passada no Haiti. A imprensa brasileira prestou pouca atenção ao fato, embora tenha havido o preocupante cancelamento do segundo turno da eleição presidencial. Qual é sua avaliação de todo este processo político no Haiti?
Celso Amorim – Há um lado negativo, mas há também um aspecto positivo. Evidentemente todos nós gostaríamos que tivesse havido o segundo turno, que ele fosse competitivo e que permitisse ao presidente eleito governar com legitimidade. Isso não ocorreu e foi ruim. Mas houve um aspecto reconfortante, para não dizer positivo: se o segundo turno tivesse sido realizado, e houve um esforço de muitos setores para que ele ocorresse, certamente o resultado teria sido ruim.

247 – Por quê?
Amorim – Porque todas as forças politicas, com exceção do governo, haviam questionado a lisura do processo eleitoral. Um dos candidatos que passou para o segundo turno anunciou que não concorreria, criando a inusitada situação de um segundo turno com candidato único. Seria muito ruim para a consolidação do processo democrático no Haiti, que é o nosso objetivo. Agora vamos ver o que vai acontecer.

247 – Então o senhor acha que foi correta a decisão do chamado Conselho Eleitoral, de cancelar o segundo turno naquele momento?
Amorim – Foi correta. Eles alegaram sobretudo motivos de segurança. Eu tenho dúvidas porque os incidentes ocorridos não foram muito diferentes dos que aconteceram no primeiríssimo turno, o da eleição legislativa, que é separada do pleito presidencial. Acho que o Conselho Eleitoral estava se sentindo um pouco constrangido com a situação. Muitas associações, a Igreja Católica, associação de jornalistas, além dos partidos de oposição, vinham criticando o processo. De modo que nestas condições as eleições perderiam muito a credibilidade.

247 – Elas poderiam resultar na posse de um presidente com déficit de legitimidade?
Amorim – O mandato poderia ser legal, apesar das acusações de fraudes, mas sem dúvida a percepção de legitimidade seria muito baixa, o que poderia ter consequências. O Haiti é um país muito complicado. As coisas lá ganham sempre uma feição mais violenta, de confrontação. Imagine, depois de 12 anos de Minustah (missão da ONU para a estabilização do país, com efetivo militar coordenado pelo Brasil), instalar-se uma situação com esta. A necessidade de outra Minustah, dentro de um ano, um ano e meio, seria muito frustrante. Eu acho que agora, dentro de um quadro de normalidade, o importante é que haja o prosseguimento do processo eleitoral. O atual presidente deixará o cargo, por determinação constitucional, no dia 7 de fevereiro. Um governo provisório terá que ser negociado para a fase transitória. Poderá ser chefiado pelo presidente do Senado ou por outra pessoa que garanta a sequência democrática.

247 – Não há tempo para a realização do segundo turno antes do fim do mandato do atual presidente?
Amorim – Não, não há. E essa é a nossa grande preocupação, pois ele terá de deixar o cargo. A comunidade internacional empenha-se em ajudar mas, de certo modo, quer se livrar logo do problema, concluindo o processo com a entrega do poder a um presidente legitimamente eleito. Mas em segundo turno com candidato único, não foi possível. Agora, a grande dúvida, em minha opinião, é se vai se conseguir realizar o segundo turno num prazo relativamente curto, algo em torno de cinco, seis semanas, ou se haverá um processo mais longo. Uma das reivindicações do candidato que desistiu de concorrer ao segundo turno cancelado era a garantia de um tempo mínimo de campanha que lhe permitisse organizar-se para a disputa. E este tempo, de cinco, seis semanas, acho que seria razoável. Mas este é um problema que os haitianos é que terão de resolver. Outro aspecto positivo é que está havendo diálogo, envolvendo principalmente o presidente do Senado, que não sendo da oposição, dialoga muito com a oposição, bem como com o governo. Vamos ver se encontram uma solução. O ideal é o segundo turno entre os dois primeiros colocados, com tempo de campanha adequado e com a correção dos aspectos criticados no primeiro turno. Um deles era o numero excessivo de fiscais. Nas eleições legislativas votaram l,2 milhão de eleitores. Mas 900 mil eram fiscais dos partidos. Isso não existe em lugar nenhum do mundo. Um número tão grande de fiscais gera dúvidas, cria conflitos e torna-se uma fonte de corrupção. Isso facilita a manipulação ao invés de garantir a lisura do pleito. Eu mesmo, quando acompanhava a votação, perguntei a uma pessoa com crachá qual o partido que ele representava. Ele hesitou, mas acabou dizendo o nome de um partido que não era o indicado na credencial. Então eu lhe disse "não, você não é deste partido". Ele se fez de desentendido mas podia estar comprado ou podia simplesmente nem saber o que fazia. Isso mostra como o processo é confuso e justifica a minha preocupação, que foi a preocupação da OEA, em separar as eleições presidenciais das demais. Num novo segundo turno, concorrerão apenas dois partidos e com isso o número de fiscais já será reduzido de 900 mil para 30 mil.

247 – A abstinência do eleitorado também foi alta, não?
Amorim – Este é um problema grave, que não vai se resolver a curto prazo. Ele decorre, primeiro, de uma descrença profunda do povo haitiano no cumprimento de promessas pelos eleitos…

247 – Uma descrença que afeta o sistema representativo em todo o mundo…
Amorim – Além da descrença, no Haiti o voto é facultativo, e isso precisa ser destacado. Por aí se vê que o voto facultativo nem sempre traz os benefícios que dele se espera. Acho que o voto obrigatório faz a pessoa refletir sobre a eleição e bem ou mal contribui para a politização, para a elevação do nível de educação política dos eleitores. Na eleição legislativa o índice de comparecimento foi de apenas 18%. No primeiro turno presidencial foi um pouquinho melhor, aproximando-se dos 30%. E existe ainda o temor da violência embora as forças policiais haitianas tenham tido um papel positivo, a meu ver. A violência diminuiu. Mas a polícia nada podia fazer, por exemplo, em relação ao número de fiscais, em relação a intimidações e violações diversas, como ao voto secreto, por exemplo.

247 – Logo depois do cancelamento do segundo turno houve grandes manifestações de rua contra o presidente Martelly, pedindo sua renúncia. Elas terão consequências para a governabilidade?
Amorim – Acho que já não cabe a renúncia, pois faltam dez dias para o final do mandato. No fundo a oposição quer ter é certeza de que ele sairá no dia 7 de fevereiro. Um dos receios é de que ele continue transitoriamente. E que ele estando no controle, a eleição seja, digamos assim, incorreta. Então será melhor que esteja no governo uma pessoa neutra, seja o presidente da Suprema Corte ou o presidente do Senado, ou alguém semelhante…

247 – Então a oposição teme um golpe prorrogacionista, não?
Amorim – Sim, os protestos refletiram este temor, mas eu não creio que haverá tal golpe. Existe outro fato preocupante no Haiti, que pude apurar em conversas com forças de segurança. Estão tentando recriar aquelas organizações de ex-militares, o que gerou, por exemplo, em 2004, a entrada no país da Minustah. Este é um aspecto preocupante e a Minustah vai estar atenta. Os ex-militares não são todos de extrema direita mas entre eles há também grupos em conexão com tráfico de drogas e outros ilícitos.

247 – E este segmento ainda tem força politica?
Amorim – Embora não tenha expressão política, minha preocupação é com o surgimento de um vazio político que possa ser ocupado por forças desta natureza. Por isso é importante que a solução venha com a realização de novo pleito dentro de umas seis semanas, evitando este vácuo no qual não se sabe o que pode acontecer, não se descartando manifestações mais violentas da oposição, o que poderia representaria uma volta à instabilidade de 2004, o que precisa ser evitado. Temos que evitar o retrocesso mas de uma maneira que seja compatível com os interesses dos haitianos. O que não pode é a comunidade internacional querer impor uma solução. A decisão precisa ser dos haitianos. Por isso a abertura do diálogo entre as forças políticas, entre oposição e governo, foi a coisa mais positiva que vi lá nos últimos dias. Saí de lá na terça-feira, dia 26.

Espero que eles encontrem uma solução razoável, que indiquem um presidente provisório para chefiar o governo e presidir o processo eleitoral. E que seja garantida uma eleição limpa, com observância de princípios como o sigilo do voto, evitando-se fraudes, compra de votos e outros desvios.

247 – O Brasil teve um papel importante na estabilização promovida pela ONU, coordenando os efetivos militares da Minustah. O senhor, como ex-chanceler, desfruta de grande credibilidade e respeito internacionais mas deve ter sido indicado para chefiar a missão da OEA no Haiti também por ser brasileiro…
Amorim – Certamente. Houve um engajamento profundo do Brasil no Haiti também a partir do terremoto.

247 – E no entanto, a imprensa, os meios acadêmicos e a sociedade brasileira em geral deram pouca atenção ao processo eleitoral naquele país e ao seu papel como chefe da missão da OEA. Vi numa emissora uma referência à missão sem citar seu nome. A quê atribui isso?
Amorim – Houve isso de fato, não sei se por desconhecimento ou por outra razão. Embora eu tenha falado pouco por conta da delicadeza da situação haitiana, fui procurado e entrevistado pelo Le Monde, pela Radio France e por diversos veículos do mundo. Durante a eleição lá, dei enormes entrevistas coletivas, registradas por veículos locais e de outros países. Não sei explicar o desinteresse da mídia brasileira, se não pelo meu papel, ao menos pelos acontecimentos num país pelo qual o Brasil sempre se interessou muito e no qual vem cumprindo um papel relevante. Explicar isso envolve uma certa sociologia da mídia brasileira, que eu prefiro não exercitar.

247 – Não vê nisso nenhuma conexão com os problemas da política interna, como o fato de ter sido ministro do ex-presidente Lula que, no momento, é alvo de uma caçada política?
Amorim – Não posso acreditar nisso. Fui chanceler de Lula durante oito anos, fui ministro da Defesa da presidenta Dilma durante três anos e meio. É estranho que ninguém tenha se interessado mas não vou ficar elocubrando. Até porque já me ouviram sobre outros temas da política externa. É certo também que existe muita ignorância, muito desconhecimento dos meios de comunicação sobre política internacional. Uma certa preguiça faz com que seja mais fácil comprar versões prontas das agências internacionais.

247 – Existe também uma cultura, na imprensa brasileira, de secundarizar as questões de política externa…
Amorim – Interessante que eu encontrei lá no Haiti repórteres não apenas ocidentais, mas também chineses, russos, indianos. E que o Brasil, tendo feito investimentos elevados no Haiti, tendo descoberto tantas afinidades culturais, como a semelhança entre a pintura deles e a nossa, a proximidade das religiões, a força comum da matriz afro-americana, ignore o Haiti. Lá morreram 18 militares brasileiros, lá morreu doutora Zilda Arns durante o terremoto. E apesar de tudo isso nossos jornais e emissoras não puderam mandar um repórter cobrir um momento importante da consolidação democrática do Haiti, ainda que não fosse um brasileiro o chefe da missão.

247 – Não há também uma espécie de foco exclusivo nos países ricos?
Amorim – Há uma rede de televisão brasileira que quando precisa dar uma notícia sobre o Irã, quem faz a matéria é o correspondente em Israel. Por aí se vê como a política internacional é tratada pela mídia brasileira. Isso é impossível, por mais competente que seja o profissional. Mostra o quanto estamos atrasados no trato das questões internacionais. Tudo isso pode ser desculpado, mas não a ausência no Haiti, país irmão do Brasil, membro do grupo América Latina e Caribe…

247 – Mas é pobre, não?
Amorim – É, ninguém gosta muito de pobre… Como você sabe, no meu tempo como chanceler, no governo Lula, e depois, no governo Dilma, nunca foi esta a posição do governo. Mas infelizmente tem sido esta a postura de boa parte de nossas elites, entre as quais a mídia.

247 – Voltando ao Haiti, o Le Monde lhe perguntou, na entrevista, se concorda com as críticas à comunidade internacional pela atuação no Haiti. Quais são estas críticas?
Amorim – Eu acho que todos erramos. Inclusive eu como chefe da missão da OEA. Nós demoramos a constatar, com toda a clareza, que a eleição estava se tornando inviável na data prevista, porque as acusações eram muitas. Ainda que nem tudo tenha sido fraude, pois as estatísticas mostram que não houve grandes desvios entre a votação e a apuração. Pode ter havido aquele tipo de problemas que já mencionei como compra de voto, aliciamento de eleitores e coisas que não poderão mais ser provadas. Mas de qualquer maneira, a possibilidade de irmos para o segundo turno com candidato único tornou-se algo inaceitável e a primeira organização a dizer isso, através de nota de cuja redação participei diretamente, conclamando ao diálogo, foi a OEA. Esta nota foi emitida poucos dias antes do pleito cancelado e funcionou como uma alerta para outros organismos internacionais. Lá tem uma organização chamada Core Group, ou grupo nuclear, e o Brasil é o único país emergente que o integra. Os outros são Estados Unidos, Canadá,. União Europeia e Espanha. Depois da nota da OEA, apontando a marcha do impasse político e a necessidade de diálogo, este grupo também se manifestou na mesma linha, destacando a necessidade de que o governo a ser eleito seja reconhecido pelos haitianos. Afinal, neste processo os haitianos são mais importantes que os outros.

247 – O senhor continuará chefiando a missão da OEA?
Amorim – Não sei o que vai acontecer. Primeiro porque não sabemos qual será o resultado do diálogo em curso lá. Depois, a escolha é do secretário-geral da OEA. Por fim, dependendo do momento para o qual for marcado o segundo turno, terei que conciliar com outras funções e compromissos meus. Estou sendo indicado pelo governo brasileiro para presidir um grupo que se chama Unitaid. Uma organização sui generis porque é integrada também por ONGS, que tem como objetivo baratear os custos dos remédios. Uma decorrência daquelas nossas políticas, do governo Lula, relacionadas com patentes e propriedade intelectual e da busca de novas fontes inovadoras de financiamento da saúde. Este grupo nasceu sobretudo de um esforço do Brasil e da França e agora vou presidi-lo. Resumindo, vai depender de tudo isso mas creio que continuarei no posto se o desenlace vier nas próximas seis semanas.

247 – E a situação política interna do Brasil, como é sua visão?
Amorim – Evidentemente que a situação é difícil, com graves problemas econômicos. Não me lembro de uma crise prolongada como esta, complicada por uma crise política bastante artificial porque provocada por ambições. Gostamos muito de comparações com a Argentina. A oposição argentina deu um bom exemplo. Ganhou a eleição e assumiu o governo. Isso é do jogo. O que não se pode é buscar encurtar o mandato da presidente para chegar ao poder por atalhos, o que torna qualquer iniciativa do Executivo mais difícil. Mas creio que vamos atravessar tudo isso. Vai ser uma travessia complexa, mas vencendo a crise política, começaremos a vencer as dificuldades econômicas.

247 – E como vê o claro esforço para envolver o ex-presidente Lula nos ilícitos investigados pela Operação Lava Jato?
Amorim – As acusações de corrupção são uma constante na história política brasileira. Mas com exceção do caso Collor, que gerou uma certa unanimidade nacional, as acusações buscam atingir quase sempre governos com duas características. Uma, são populares. São comprometidos com a luta contra a desigualdade. Outra, procuram diminuir nossa dependência externa e aumentar nossa autonomia, fortalecer nossa soberania. Isso não suprime a importância do combate à corrupção e da punição a delitos. É bom que haja punição. Mas há também uma carga ideológica muito grande em função da orientação do governo e da busca de autonomia nacional. Estas circunstâncias é que fazem do ex-presidente Lula um alvo, embora ele continua com uma popularidade de 30%, apesar de todas as manchetes negativas com seu nome. As investigações precisam continuar, mas não podem partir de presunções. As manchetes de jornais e revistas, muitas vezes infundadas, acabam influenciando a população. Cinco anos depois, não adianta registrar que tal pessoa era inocente. O mal já foi feito.