Primeiro nascido em meio à luta pela terra dos anos 1980, Marcos Tiaraju Correa da Silva se formou em medicina na Ilha de Fidel Castro. No ano passado, retornou ao Brasil para exercer o seu ofício
9 de Setembro de 2013 às 07:39
Iuri Müller e Samir Oliveira
Sul 21 – O nome de Marcos Tiaraju Correa da Silva foi escolhido de forma coletiva, mediante votação em uma assembleia com quase 10 mil pessoas. O cenário desta decisão era a ocupação do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) na fazenda Annoni, no norte do Rio Grande do Sul, no dia 1° de novembro de 1985.
“Marcos”, porque tratava-se do nascimento da primeira criança em uma ocupação do movimento. “Tiaraju”, em homenagem ao indígena Guarani Sepé Tiaraju, que liderou seu povo em uma guerra contra os colonizadores na América do Sul. Filho da histórica militante Roseli Nunes, Marcos Tiaraju nasceu, como ele mesmo define, “embaixo da lona preta”.
Marcos Tiaraju nasceu sem-terra, mas permaneceu anos politicamente afastado desta condição. Muito tempo depois, retomou o contato com MST e passou a militar na organização. Em 2006, foi estudar Medicina em Cuba, retornando ao Brasil em setembro de 2012.
Atualmente, trabalha em três postos de saúde da rede municipal de Nova Santa Rita, município de 20 mil habitantes, a 21 quilômetros de Porto Alegre, que possui quatro assentamentos do MST.
Nesta entrevista ao Sul21, Marcos Tiaraju fala sobre o ensino da Medicina em Cuba e o programa Mais Médicos do governo federal brasileiro. Para ele, a iniciativa “vai fazer uma grande diferença para aquelas famílias que não tem acesso a médicos durante os 365 dias do ano”.
“Fui para Cuba na condição de militante do MST que retornaria depois com o compromisso de atuar nas áreas de maior necessidade”
Sul21 – Qual é a tua posição sobre esta prova? É um processo justo?
Marcos Tiaraju – O conteúdo da prova e o grau de dificuldade são o que de fato se espera de um médico generalista. Mas a elaboração da prova é injusta, no sentido de que são 110 questões para serem resolvidas em cinco horas. Nenhum médico consegue atender, com qualidade, 110 pacientes em cinco horas. São dois minutos por questão. Nenhum médico consegue atender um paciente, realizar um interrogatório, um exame físico, solicitar exames complementares, fechar um diagnóstico e prescrever um tratamento em dois minutos. Por mais que as questões estejam dentro da capacidade de resolução dos profissionais formados no exterior, a forma como elas são elaboradas cria muita dificuldade.
Sul21 – A prova precisaria ser diferente?
Marcos Tiaraju – Não somos contrários à realização da prova. Sabemos que temos capacidade para ser aprovados nesse exame. Mas deve ser uma prova justa. O Conselho Federal de Medicina vive utilizando os índices de reprovação para dizer que os médicos formados no exterior não estão preparados para exercer a Medicina no Brasil. Gostaria de ver qual seria o grau de aprovação se esta prova fosse feita por médicos formados no Brasil.

“Nenhum médico consegue atender um paciente, realizar um interrogatório, um exame físico, solicitar exames complementares, fechar um diagnóstico e prescrever um tratamento em dois minutos” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Sul21 – Como foi o processo de escolha do teu futuro local de trabalho?
Marcos Tiaraju – Depois de passar na prova, começamos um processo de discussão interna no MST. Fui para Cuba na condição de militante do movimento que retornaria depois com o compromisso de atuar nas áreas de maior necessidade. Debatemos isso com o MST, junto com outro companheiro que se formou comigo, durante três meses. Visitamos várias comunidades e assentamentos. Vendo as diferentes condições, acabamos decidindo coletivamente que iríamos trabalhar no município de Nova Santa Rita. É um município onde existem quatro assentamentos do MST e onde boa parte da população vive na zona rural e ainda é desassistida em termos de atenção médica. Desde abril deste ano estamos desenvolvendo o trabalho lá. Ainda estamos em uma fase inicial. O município não tem nenhuma equipe de saúde da família, tem quatro postos de saúde, não tem hospital. A cidade carece não só de atenção médica, mas de organização do sistema municipal de saúde.
Sul21 – Como tu avalias a eficácia do programa Mais Médicos no teu trabalho, por exemplo? Em cidades como Nova Santa Rita?
Marcos – Acredito que o programa Mais Médicos é um momento onde se passa a ver de fato a saúde do povo como prioridade. A iniciativa surge com a ideia de interiorizar os médicos, levá-los aos municípios onde não existe atenção médica. Geralmente os médicos, quando se formam, não querem se distanciar dos grandes centros urbanos. Isso ocorre por vários fatores: querem seguir estudando, não querem morar no interior ou querem manter um padrão de vida com o qual já estão acostumados. Eu apoio o programa Mais Médicos porque é um avanço social. Vai fazer uma grande diferença para aquelas famílias que não tem acesso a médicos durante os 365 dias do ano.
Sul21 – Uma das críticas ao programa é o fato de que somente a presença de um médico não resolve muitos outros problemas da área da saúde, como condições de trabalho e estrutura, por exemplo.
Marcos Tiaraju – É claro que o médico, sozinho, não consegue resolver os problemas da saúde brasileira. Esse médico precisa de uma equipe que dê suporte ao seu trabalho, de condições estruturais e do apoio dos demais níveis da área da saúde. Mas não podemos dizer que, se não tiver tudo isso, o programa Mais Médicos se torna sem serventia. O programa vai resolver muitas coisas, sim, principalmente do ponto de vista mais imediato. Vai fazer uma enorme diferença para as pessoas que não possuem atenção médica em suas comunidades. O que precisamos fazer é, ao longo do tempo, criarmos as condições que faltam para que os médicos tenham o suporte necessário ao seu trabalho. É preciso dar o primeiro passo, e esse primeiro passo é a ida do médico para a comunidade.
“Quer dizer, então, que, para ser médico neste país, é preciso ser loiro e ter olhos azuis?”

“Imagina o meu caso, então: não sou loiro, não tenho olhos azuis e não estou dentro dos padrões estéticos que o mundo prega. Além de tudo, sou sem-terra” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Sul21 – Como tu vês as reações mais exacerbadas ao programa? Um médico cubano e negro foi vaiado e chamado de escravo por colegas brasileiros.
Marcos Tiaraju – É muito contraditório que um profissional que jurou defender a vida negue auxílio a um colega só porque ele é de outro país. Será que esses médicos brasileiros que fizeram isso estão cumprindo o juramento que assumiram? Será que estão cumprindo a função social da Medicina ou estão defendendo interesses pessoais e corporativos? Comentários como esses são vergonhosos. Acredito que quem diz uma coisa dessas não deve ter estudado história. A sociedade cubana, no que diz respeito a direitos trabalhistas, é muito mais avançada do que a nossa. Esses profissionais não vêm como escravos. Eles vêm ao Brasil porque assumiram para si o compromisso humanitário da Medicina.
Sul21 – Em outra ocasião, uma jornalista disse que as médicas cubanas têm “cara de empregada doméstica”.
Marcos Tiaraju – São comentários racistas e xenófobos. A sociedade se mostrou contrária a isso. Quer dizer, então, que, para ser médico neste país, é preciso ser loiro e ter olhos azuis? Morenos, negros, mulatos e pessoas que vêm de uma classe social menos favorecida não podem ser médicos? Imagina o meu caso, então: não sou loiro, não tenho olhos azuis e não estou dentro dos padrões estéticos que o mundo prega. Além de tudo, sou sem-terra. Eu só me tornei médico na sociedade brasileira graças ao processo revolucionário cubano. Os médicos cubanos não vêm para ferir o interesse de ninguém, mas para ajudar os interesses do povo brasileiro que necessita de atenção médica. Os médicos brasileiros que não estão apoiando os colegas estrangeiros deveriam repensar se de fato são médicos. Será que esse indivíduo que não quer ajudar os colegas a resolver o problema de saúde do Brasil é, de fato, um médico? Será que ele assumiu um compromisso social com aquilo que estudou?
Sul21 – Como tu vês a falta de interesse em se trabalhar com saúde da família no Brasil?
Marcos Tiaraju – A Medicina de família ainda no Brasil não foi encarada como uma prioridade. Não existe um incentivo durante a formação para que os profissionais atuem como médico de família. Já ouvi de bons colegas brasileiros que, durante a faculdade, é dito que trabalhar com saúde da família não dá status. Como se ser médico fosse defender um status. Os alunos são incentivados pelos professores a trabalhar em super especialidades, porque é o que dá dinheiro, status e faz crescer o nome do indivíduo.