A INSURGÊNCIA BRASILEIRA: OS SONHOS NÃO MORREM!
01 – Insurgência brasileira? Mas de onde saiu isso que não estava no script! Tudo estava sob o mais absoluto controle, tchê! Todos os capítulos já estavam gravados. Não poderia existir surpresa alguma! O povo brasileiro é um povo pacífico e ordeiro! Até lá na bandeira está escrito o lema positivista: “Ordem e Progresso” (certo, concordo: não diz lá para quem é essa “ordem” e tampouco para quem é esse mitológico “progresso”). Mas o povo brasileiro, que habita um país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza, é ordeiro. É um povo que adora “football” e, em tempos de copa, deveria estar nas ruas, comemorando. Nada mais. Mas não! Está nas ruas p r o t e s t a n d o. Que crise! Então, o que se passa, vivente? O que você quer? Diga e vamo resolvê logo esta pendenga!
02 – Gênese do problema. O Brasil, como país, nasceu pelas mãos dos colonizadores/imperialistas europeus. Descoberto [1]por força do acaso[2], nunca recebeu o tratamento que um lar deve receber. Os colonizadores, a serviço do Império, aqui aportavam para explorar as riquezas e praticar outras barbáries mais. Fizeram uso do trabalho escravo dos “índios” (que, como se sabe, não se submeteram.), dos negros[3] e, por fim, abriram o “paraíso” para os trabalhadores do mundo todo. Pessoas de todo o mundo para cá migraram. Na sua esmagadora maioria, eram pessoas pobres, simples, de boa índole, que nada mais queriam do que realizar o sonho de viver uma vida digna. Havia a promessa de um futuro maravilhoso! Foram enganados: não existia “paraíso” algum. Para cá vieram para servir de mão-de-obra barata e deixar de ser incômodo para os seus países de origem. O tempo passou, e o País continuou a ser tratado como uma colônia: um lugar a ser explorado. Suas riquezas naturais – que são muitas – e o seu povo. Uma elite nacional, aliada aos colonizadores, tratou de dar continuidade ao projeto imperialista. O aparelho estatal – no caso, o Ente Público como um todo, isto é, União, Estados e Municípios – decorrente dessa realidade material, como não poderia deixar de ser, estruturou-se para ser instrumento para a pilhagem dos recursos naturais e para organizar a exploração do povo. Este Estado (e suas instituições) nunca passou de um ente patrimonialista e autoritário. Sua organização social, como um todo, sempre foi um retrato fiel dessa realidade: profunda desigualdade social com uma minoria rica e uma maioria muito pobre, discriminada e segregada. Qualquer movimento social que se tenha articulado ao longo da história para mudar essa situação foi, sempre, impiedosamente reprimido (a comunidade de Canudos que o diga!). Quem conhece a história do Brasil sabe que é assim. No mais recente ato de repressão, passamos vinte anos sob o jugo da espada. Esta é a gênese do Brasil.
03 – Nosso povo, como não poderia deixar de ser, é carregado pela esperança e pela fé. – Um dia esse país haverá de cumprir a sua promessa! O sonho é teimoso, não morre. Já foi, muitas vezes, para a rua clamar por democracia. As portas sempre lhe foram fechadas. No último período de arbítrio, todas as vozes foram caladas, a ferro e fogo. O fim desse período foi habilmente conduzido de forma “lenta” e “gradual”. Tudo, claro, para que fosse levado a efeito sob o controle daqueles que detêm o poder real[4]. E assim aconteceu. Foi tão bem controlado que o primeiro presidente após a “abertura” foi um civil, capacho do mesmo regime e o primeiro pleito eleitoral foi vencido por um aventureiro (que hoje é Senador da República!), autodenominado “caçador de marajás”, eleito com a força manipulatória de conhecido e poderoso canal de televisão (que é uma concessão pública). Não tendo criado as condições para se manter no poder e diante das manifestações populares que clamavam por ética, as elites, percebendo o erro que haviam cometido, retiraram o apoio dado àquele que era o seu legítimo representante. Dessa feita, foi ele o cassado. Não tinha problema algum, o seu vice daria sequência ao projeto. E foi assim que aconteceu. Foi uma paulada. Mas a população brasileira não se deu por vencida. Votou duas vezes num presidente social democrata que prometia criar no Brasil o estado de bem estar social (o famoso welfare state). Mas, mais uma vez errou feio pois o cara, de saída, mandou “esquecer” o que tinha dito e passou a colocar em prática as malfadadas políticas neoliberais. Foi vendendo nosso patrimônio para o capital, em condições até hoje mal explicadas. No pleito seguinte, o povo buscou corrigir o seu erro e votou, para a presidência da república, num partido que prometia lutar pela ética, pela democracia, pela dignidade e pela reforma do Estado. Esse partido, embora timidamente, defendia também o socialismo. Reelegeu e elegeu mais uma vez o mesmo projeto. O tempo passou e, afora algumas mudanças que são inegavelmente importantes (distribuição de renda, habitação, acesso ao ensino público superior pelas camadas mais pobres da população, dentre outras coisas importantes que não cabe relacionar aqui), o que se viu, na realidade, é que o poder continuou nas mãos das elites. E isso por várias razões: (A) Uma, porque as condições materiais de produção da vida em sociedade continuaram sendo exatamente as mesmas e a superestrutura que elas produziram continuaram as mesmas. Prova? Os banqueiros, todos sabemos, nunca ganharam tanto dinheiro como nos últimos dez anos. O agronegócio, sob o controle total do capital internacional, nunca rendeu tanto. (B) Outra, porque mesmo dentro do sistema político existem mecanismos habilmente instalados, que impedem os avanços e mudanças (assim, ao mesmo tempo que para a presidência da república a população votou num partido que prometia mudanças, para o legislativo, governos estaduais e prefeituras, votou em projetos que negavam essa mudança.) Como explicar um Renan Calheiros na Presidência do Senado Federal!? E um Marcos (não sei o que, porque feliciano não pode ser) na presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara?! (C) Por último, porque as próprias lideranças do projeto político que prometia mudanças, sucumbiram e passaram a jogar o jogo do poder. Andar em más companhias passou a ser um meio para atingir um fim. Mas qual fim pode ser alcançado com tais meios? Gradativamente, as pessoas deixaram de acreditar que um dia as coisas poderiam mudar. O desencanto aumentou a cada dia. A paciência foi ficando pequena. Os agentes políticos gradativamente foram perdendo o crédito. Iniciou-se um movimento social fruto do desencanto. Contra quem se insurge? Como se organiza? Quem o representa? O que reivindica? Quais os interesses que defende? Estes são os enigmas.
04- Trata-se, sem sombra de dúvidas, de um movimento social sem precedentes em nosso País. A mídia conservadora nem mesmo sabe como lidar com ele, como classificá-lo, como abordá-lo. É uma situação terrível, típica da pós-modernidade. Os interesses e os valores foram, pouco a pouco, se fragmentando. Não existe mais um lugar certo. Mesmo os interesses de classes, com a evolução do terceiro setor, já não são mais claramente identificáveis. Não é possível dizer que esse movimento pertence a uma classe ou a outra. Não é mesmo. Mas, então, contra quem se insurge esse movimento? Quem são os protagonistas? Como se organiza? Quem o representa? O que reivindica? Quais os interesses que defende? Que enigma! Não dá para dizer de forma simplista (usando o raciocínio que caracterizou o chamado pensamento mecanicista) que este movimento é de “direita” ou de “esquerda” e, com isso, poder estigmatizá-lo e descartá-lo de cara. A impossibilidade de definir claramente um lugar para esse movimento faz com que se torne difícil até mesmo classificá-lo. E sem classificá-lo é difícil até mesmo pensá-lo, entendê-lo. Como atacá-lo ou defendê-lo? Trata-se de uma situação nova. Mas, ainda assim, o desencanto e a atomização dos valores e interesses por si só não explicam esse movimento, pois ele não seria possível sem a conjugação de mais um elemento presente na atual sociedade: A comunicação através das redes de computadores. Esse fator é determinante, porque os meios de comunicação no Brasil sempre cumpriram um papel importante na consecução dos desígnios da dominação e da exploração. Mais atuaram para desinformar e para transmitir a ideologia dominante. Mas com as redes sociais, a comunicação acabou se estabelecendo horizontalmente, por outros canais e de forma mais democrática. E, mais do que isso, a própria mídia conservadora acreditando que cumpriria indefinidamente o seu papel manipulatório, vê-se desmentida através das redes de computadores. São, seguidamente, flagradas aplicando a maior mentira nos desavisados, crédulos e fieis telespectadores (e nem pedem desculpas!). Então, aparentemente, trata-se de um movimento independente e que tem o objetivo de postular uma correção dos rumos na política do Estado brasileiro. É contra o Estado colonial/patrimonialista que o movimento se insurge? A corrupção, de fato, grassa solta em todas[5] as esferas do Poder Público (e ainda querem afastar o Ministério Público do poder de investigação e fiscalização!). A omissão de alguns e a ação de outros está permitindo que a política caminhe para o desencanto. Talvez, como hipótese, pode-se admitir que esse movimento seja, em parte, um reflexo de uma política governamental que investiu na inclusão social. O filho do pobre hoje está na universidade. Qual a visão que ele tem da política e o que ele espera da política? Talvez isso esteja sendo expressado nesse movimento também! Não é possível desconsiderar que tudo isso levou ao crescimento da consciência política do brasileiro e que esse movimento também pode ser decorrência dessa tomada de consciência. Fala-se, de forma insistente e reiterada em crise econômica. O simples fato de existir uma possibilidade de avizinhar-se do Brasil uma crise econômica e social não pode estar dando combustível para esse movimento? Qual é o cidadão brasileiro que deseja uma crise econômica? (Claro, existem aqueles que torcem para que tal aconteça!). E quanto a sociedade do consumo, será que as pessoas estão de fato satisfeitas com esse modelo, ou, dito de outra forma, será que a sociedade do consumo é, efetivamente, uma resposta para os desígnios humanos? Outra questão: será que o Brasil é mesmo o País do futebol como prega a mídia? Será que o nosso povo não tem valores mais nobres do que aqueles propalados pela mídia? Então, a mídia cria um país de mentira! Mas em nome de quem? Quais interesses que representa? (o movimento de insurgência está devolvendo para a mídia essa pergunta que sempre nos incomodou). Pelo visto, o povo não concorda com os altos gastos de dinheiro público para satisfazer os interesses de quem mesmo? Da FIFA! Será que uma nação pode, sem pagar um alto preço, se vergar aos interesses privados e obscuros de uma entidade como a FÉDÉRATION INTERNATIONALE DE FOOTBALL ASSOCIATON (isso desperta o sentimento de que realmente não passamos de uma colônia e, se for assim…) e desviar para o football recursos que seriam de grande importância para a saúde e para a educação? Atender exigências de quem mesmo? Da FIFA! Bah, tche, mas que coisa, atender as exigências de uma entidade privada comandada por intragáveis cartolas! Ora, se o País está a atender a exigências tais, então que atenda a todas as exigências da nossa população. É difícil saber o que está acontecendo. Que coisa terrível. Mas, toda atenção é pouca diante de fato social tão importante, pois as aves de rapina aí estão para tirar proveito do que quer que seja. A presidente está certamente “ligada” nisso. Não caminhamos, como podem pensar ingenuamente alguns, sempre para a frente. Muitas vezes retrocedemos. Muitas vezes caímos. Então, se o objetivo é andar para a frente, a pauta desse movimento deve ser definida e a violência deve ser evitada a todo custo. Além disso, todos os partidos políticos, autoridades e instituições verdadeiramente comprometidos com a democracia e todas as pessoas que de alguma forma exerçam poder de liderança nesse movimento, devem abrir os canais que conduzam ao diálogo, para que desse movimento resultem transformações que apontem em direção à terra prometida e que realizem aquilo que está cravado logo no artigo primeiro da Constituição Federal: “Dos Princípios Fundamentais: Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político.Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.” É, está escrito lá, como princípio fundamental da nossa República (do latim “res”: coisa. “Coisa de todos”.): a dignidade da pessoa humana. Não é uma faculdade, não! É uma obrigação que vincula todos os administradores públicos. Todos, mas todos mesmo. Ninguém pode se desviar desse objetivo. A maturidade dos agentes políticos está sendo colocada à prova. Para onde vamos?
05 – O Brasil tem uma Constituição e nela está estampado que o País tem como fundamento a dignidade da pessoa humana e que deve executar políticas tendentes a diminuir as desigualdades sociais, a discriminação e a miséria. Este é o nosso contrato social e fundamento de nossa democracia e é o sonho que buscam todos os brasileiros. Precisamos de uma coisa: que nossa Constituição seja cumprida. (Aliás, Partido Político, em época de eleição deveria, em primeiro lugar, dizer como vai cumprir o quanto está petrificado na Constituição Federal. O resto é conversa mole). Cumprir a Constituição Federal significa transformar o nosso País numa sociedade pautada pelos princípios da democracia formal e material. Pela liberdade e pela igualdade. Mas, nesse caso, precisaremos cortar o vínculo com a lógica do colonizador e seus asseclas, pois isso implica cortar privilégios, democratizar e modernizar o aparelho estatal, democratizar o acesso à informação e, principalmente, democratizar o acesso às riquezas deste país. Como fazer isso sem que, mais uma vez, a democracia seja colocada em questão? Em tempos de pós-modernidade e de comunicação instantânea, isso é possível. Não existe espaço, pelo menos no presente momento, para regimes autoritários. Então, que se ouçam os manifestantes e que se faça desse país aquilo que dele todos esperam: uma verdadeira nação, democrática, de cidadãos livres e iguais, onde o valor da dignidade da pessoa humana tenha sua realização na vida real de todos os brasileiros. Que este seja, apenas, o primeiro de muitos movimentos. Os colonizadores e seus asseclas ainda não sabem (e ninguém sabe!) o que virá pela frente. Mas que se diga: que seja sem violência, porque os fins não justificam os meios. E mais do que isso, os meios incorporam-se aos fins. E ninguém, em sã consciência, almeja uma sociedade da violência (ao contrário do que disse Rousseau, viver em sociedade é uma condição do homem e o dignifica). Somente assim a insurgência brasileira ficará cravada nos anais da história e nos corações dos povos (como Gandhi ficou) e provará que os sonhos não foram feitos para morrer, mas, sim, para serem realizados. Os sonhos, amigos, nunca morrerão e se realizam nas lutas e nas ações dos que neles acreditam! (José Orlando Schäfer,49, advogado, Pós-Graduado em Direito Público).
[1] Descobriram o que já existia e era habitado. Então, só para eles foi uma descoberta.
[2] Conta a história, estavam os “incautos” à procura da Índia, toparam com estas plagas. Não tiveram dúvidas: – Encontramos a Índia, e os seus bárbaros nativos somente podem ser os “índios”. Estavam errados! Era a terra do “pau-brasil”. Inobstante isso, os seus ilustres nativos passaram a ser chamados de “índios”.
[3] Que foram barbaramente arrancados do calor do seu lar para serem lançados ao mar, sem mais nem menos, em navios negreiros, escravizados e, mais tarde, sem culpa e sem dor, descartados nos guetos.
[4] Qual poder real? Na sua obra As veias Abertas da América Latina, Eduardo Galeano explica isso muito bem!
[5] Não precisamos ir longe: Basta olhar o que aconteceu no Hospital de Caridade de Três Passos, no Município de Bom Progresso, Crissiumal…